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Jornalista vencedor do Prêmio Barco a Vapor 2008 se inspira em Machado de Assis

Sep 24, 2008

Jornalista vencedor do Prêmio Barco a Vapor 2008 se inspira em Machado de Assis

Délcio Teobaldo na entrega do Prêmio Barco a Vapor 2008

Motivada pelo compromisso com a promoção da leitura e a formação de leitores, a Fundação SM premia anualmente textos originais que promovam o prazer de ler entre crianças e jovens. Mais de 500 trabalhos concorreram na edição deste ano.

O ganhador foi Pivetim, descrito pelo júri como “narrativa aguda e cortante que mostra as estratégias de sobrevivência e vínculos humanos estabelecidos por meninos de rua”. Nesta entrevista, o professor, escritor e jornalista Délcio Teobaldo, ganhador do 4º Prêmio Barco a Vapor, fala sobre a origem do seu trabalho, as relações entre Pivetim e Machado de Assis, o processo de criação literária e o papel mobilizador da literatura.

Quem é Pivetim?
A pergunta seria: O que é Pivetim? Porque em nenhum dos capítulos do livro ele é descrito como alguém que tenha um rosto, uma compleição – se é baixo, alto, magro, gordo – , se é branco, negro, enfim, que tenha uma identidade. Com isto ele se universaliza. Ele se iguala, possui o perfil da infância desassistida em qualquer parte do mundo.

Como surgiu a idéia para escrever Pivetim?
O personagem nasceu da minha consciência crítica, como jornalista; e da minha indignação social, como pai e educador. Em duas épocas distintas: 2002 quando roteirizei e editei o documentário “Infância limitada” para a TVE do Rio de Janeiro. O filme falava da exploração do trabalho infantil, um tema que, inclusive, foi bem recebido na BBC de Londres. Depois, em 2005, quando passei a assessorar a ONG “Fala, criança!”, que trabalha com uma clientela da periferia carioca, percebi que esses meninos tinham pouca voz. Fala-se deles e fala-se muito por eles. Raríssimas vezes, a não ser no cinema e nos documentários, eles têm oportunidade de opinar, expressar sua versão dos fatos. Pivetim tenta corrigir esta deficiência, na medida que dá ao personagem e aos seus amigos a condução da trama do livro, numa relação de brodagem muito própria do universo deles.

Qual a relação de Pivetim com sua pesquisa sobre Machado de Assis?
Em 2009 Machado "comemora" 170 anos de nascimento. Será uma oportunidade única de estender a reflexão sobre ele, em duas vertentes instigantes: o centenário da morte, celebrado este ano, quando se investigou tudo sobre o “velho Machado” e o moleque Machadinho, negro, pobre, epilético, gago, prognata, órfão de pai e mãe, vendedor ambulante, nascido e criado no Morro do Livramento, zona portuária do Rio de Janeiro, área de desembarque da escravaria. Machadinho, como o escritor era conhecido na infância, possuía todos os requisitos para constar na estatística de óbitos da época. Num estudo feito entre 1845, ou seja, quando Machado de Assis tinha 6 anos de idade, e 1847, o sanitarista, dr. Haddock Lobo, observou que 51,9% da mortalidade total no Rio de Janeiro era de crianças de 1 a 10 anos. Morria-se por falta de uma política de saúde e Machadinho escapou desta. Autodidata, aprendeu a se virar nas ruas e a contrariar a sociedade iletrada  oitocentista, pois gostava e portava livros. Gostar de ler e portar livros, naquela época equivalia, numa correlação direta, a portar uma arma, como a infância desassistida faz hoje. Neste aspecto, Machadinho é contemporâneo e se impõe como um ícone de superação social, ao sair da invisibilidade e se tornar o que é. Assim como Machadinho, Pivetim enfrenta e sobrevive a situações adversas, embora as semelhanças entre eles acabem aí.


Gostar de ler e portar livros, na época de Machado de Assis equivalia a portar uma arma,
como a infância desassistida faz hoje.


Por que decidiu concorrer ao Prêmio Barco a Vapor da Fundação SM?
Pivetim
foi escrito sem filtro, isto é, não foi submetido àquele tempo de reflexão e de maturação necessário a todo texto literário. Foi escrito como uma reportagem, em duas ou três semanas. Talvez porque ele já estivesse maduro dentro de mim e só precisasse ser passado para o papel. Depois de escrevê-lo deixei-o arquivado, mesmo porque o considerava híbrido: não era totalmente adulto, nem indiscutivelmente juvenil. Estava no limbo. Uma noite, navegando na rede, acessei o site da Fundação SM e soube do Prêmio Barco a Vapor. Chamou minha atenção particularmente o critério de seleção do prêmio, que falava da Série Vermelha, do leitor crítico. Este critério de seleção foi o que me motivou participar do prêmio.

Qual a maior diferença do universo que as crianças vão encontrar neste livro em relação aos relatos de violência praticada e sofrida por outras crianças que ocupam os meios de comunicação?
A função da literatura, da arte, enfim, é propor a transcendência. A violência pela violência não gera discussão; não mobiliza ações. Assim, Pivetim, o livro, contrapõe o sonho à carne; a discórdia à camaradagem; a compaixão ao abandono. Esses contrastes possibilitam ao leitor  jovem uma entrada no livro pela porta da frente, isto é, com disposição para investigar e descobrir detalhes que poderiam facilmente escapar ao olhar ou à sensibilidade de quem mergulhasse na leitura para extrair dela o real pelo real; para experimentar a comoção instantânea, mas passageira que nos provoca uma matéria na mídia impressa ou no telejornal. Por ser tão inerente ao universo deste leitor jovem, acredito que Pivetim busca e deve encontrar numa empatia que vai favorecer o diálogo e ampliar discussões.

Pivetim é um trabalho que busca transformar o mundo? Justiça social é um valor que se aprende com a literatura?
Sou de uma geração que cresceu lendo Victor Hugo (Os miseráveis); Aluísio Azevedo (O cortiço); Charles Dickens (Oliver Twist); Graciliano Ramos (Vidas secas); a poesia de Solano Trindade; vendo os filmes de Chaplin; admirando a pintura de Portinari e Munch. Então, essas realidades cruéis e estranhas à minha, que nasci e cresci numa família bem estruturada, me deram consciência crítica. É como se o contato com a dor, com a injustiça social, através da arte, me preparasse para o conhecimento e o enfrentamento do real. Como disse antes, o choque dos contrários favorece o exercício da dúvida e da reflexão; nos dá a capacidade; cria em nós a necessidade de propor ou efetuar mudanças. Hoje, com a disponibilidade de informação em tantas mídias, acredito que o leitor pode se aprimorar; fazer amizades, enfim, mobilizar-se para ações solidárias, libertárias, eficazes, com muito mais conhecimento de causa, sensatez e competência. Em vários trechos do livro, Pivetim e seus amigos recorrem a esses valores e estratégias para continuar vivos.

A questão racial está entrelaçada com a social em seu livro e são temas que algumas escolas procuram enfatizar em seus currículos.  Como você avalia o trabalho das escolas em relação a esses temas?
Sempre acreditei que é possível trabalhar uma pedagogia sem muros. A interação entre centro e a periferia; ou melhor, o apelo da rua exerce sobre esta geração um fascínio que não pode ser ignorado, nem evitado. Assim como usam ou desejam usar roupas da mesma grife; falar, dançar, curtir o mesmo som, sem dúvida, podem compartilhar os mesmos sonhos. Todas as MM (mídias móveis) favorecem esta interatividade, o que não deve ser ignorado pelas escolas, pela educação. As cinco, seis horas que uma criança passa numa sala de aula, protegida pelos muros, sob monitoramento e orientação dos professores, é muito pouco tempo diante das informações que recebem, diariamente, pela Internet ou mídias periféricas. É incoerente que a linguagem desta intercomunicação planetária, sem fronteiras, não se reproduza com a mesma democracia e intensidade na sala de aula. A pedagogia sem muros seria trabalhar reflexivamente as informações a que o aluno está exposto, dentro e fora da escola, mas nem sempre é orientado para utilizá-las como ferramentas ou estratégias de convivência.

Qual é o diálogo possível entre as crianças que vivem a realidade descrita em Pivetim e as que terão contato com ela por meio do livro?
Pivetim é um personagem urbano como, logicamente, são todos os meninos de rua. Neste ambiente, aparentemente, inadequado, excludente, violento, ele escolhe seu espaço de ação, ou comuna e extrai dela o máximo que consegue. É ali que contrapõe a amizade ao medo ou a solidão à esperança. É onde brinca, sonha, chora, ama e interage com o mundo à sua volta. Tudo nele é espontâneo, instintivo. Isto, além de identificá-lo com quaisquer crianças, logicamente, estabelece o diálogo entre crianças de quaisquer classes ou etnias. São nossas ações instintivas, orgânicas, que nos aproximam e fazem com que a gente se reconheça e se respeite em nossas diferenças.


A violência pela violência não gera discussão; não mobiliza ações. Assim, Pivetim contrapõe o sonho à carne; a discórdia à camaradagem; a compaixão ao abandono.


Você trabalha bastante com elementos da cultura popular. Quanto desta sua experiência com a música e mitos entrou no mundo de Pivetim?
Em todas as culturas do mundo a criança e por extensão, o filho, é o cursor natural da história. Sendo assim, ele deve herdar do pai, dos que vieram antes, uma terra em condições para que cresça e, como seus pais, chegue à idade adulta e mantenha a gira do mundo. Ora, qualquer evento que interrompa este curso natural, deve ser investigado. Se observarmos Pivetim sob este ângulo, percebemos que a ruptura com esta ordem foi motivada por vários fatores, todos eles possíveis, públicos, visíveis e recorrentes. Isto explica porque, em muitas situações ele aproveita a sua condição de ser, socialmente, invisível e aja sem reconhecer fronteiras entre o real e o imaginário, como o Vunji, o Curupira, o Saci, ou o Abaçaí. Tudo para provocar a nossa indignação; estimular nossa reação. Não conheço provocadores mais eficientes que os personagens nascidos da observação e do imaginário popular. Todas as paixões humanas e as conseqüentes noções de coletivo, de cidadania são resultado deste diálogo com o mundo à volta; deste processo que vem da oralidade dos griôs; que alimenta os provérbios, as parábolas, as fábulas, que concentra e foca na mesma direção os pensamentos de Esopo, Fedro, dos Irmãos Grimm, Christian Andersen ou Monteiro Lobato. Uma história clássica como Joãzinho e Maria, por exemplo, que recordo num dos capítulos de Pivetim, possui situações que testam a capacidade da criança de analisar situações; de compreender e respeitar limites. Hoje, num universo de tantas invasões e evasões de privacidade, essas histórias precisam ser recontextualizadas, recontadas.

Seu livro fala também sobre a importância da amizade e da solidariedade para enfrentar a violência da cidade, a fome e o desamparo. Essas são as principais estratégias de sobrevivência que você encontrou entre os meninos de rua?
A vida na rua possui um código de conduta próprio. As relações entre os “tarjas pretas”, como se autodenominam, por causa da faixa que vedam seus olhos, quando saem nas fotografias, são muito físicas. Olho no olho. Ombro a ombro. São arredios e ásperos a todo tipo de abordagem, de afeto, de contato externo ao grupo. Se você fizer por um, tem que fazer por todos. A força de um é a força dos outros. O vacilo de um vai custar muito caro a todos. Entre esses meninos, valores como amizade e solidariedade não são abstrações. Tudo é muito prático. Aprendido no tranco, na brodagem. Amizade ou solidariedade é dividir o mesmo jornal, cobertor, papelão, marquise ou rango que descolaram naquele dia. Esta é a ética. Não pode ser negociada. Talvez por isto mesmo tenham tanto medo de crescer, de entrar na puberdade, de virar “sujeito homem”, porque então as relações se fragmentam; eles passam a ser visíveis; ganham uma identidade numérica e, contraditoriamente, ao invés de adquirir direitos civis, ficam expostos às sanções penais.

Como você acha que seu livro promove o prazer de ler entre os jovens?
No texto, explorei ao máximo a linguagem do audiovisual, com cortes, inserções, capítulos que lembram muito os blocos de um programa de TV ou a edição de um filme de ação. O texto de Pivetim tem o mesmo ritmo de quem leva a vida fazendo malabarismo no sinal vermelho; dando um rolê no skate ou acessando um scape game. Minha vida profissional como autor-roteirista, editor e diretor de televisão, quase sempre direcionada para o público jovem, me ajudou a experimentar esta linguagem. Penetrar no universo de Pivetim por este caminho pode ser muito estimulante.


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