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Os sentidos da autonomia

by Katia Saisi last modified May 04, 2011 04:08 PM

Entrevista com Ulisses Ferreira de Araújo, conferencista nos Seminários SM de Educação, realizados em abril de 2011 em Brasília (DF), Goiânia (GO) e Ribeirão Preto (SP).

Em uma escola que se vê às voltas com problemas de autonomia, para muitos educadores pode parecer algo contraditório falar da formação para essa capacidade. Mas atenção: autonomia nada tem a ver com fazer o que se quer. É o que explica, nessa entrevista, o professor-titular da Universidade de São Paulo, Ulisses Araújo.

Um dos maiores especialistas brasileiros em moralidade na educação, Araújo mostra que há confusão entre a falta de regras (anomia) e autonomia, que é o reconhecimento e aceitação de regras, com a adesão consciente e a preocupação com o coletivo.

Para o pesquisador, é fundamental que a escola e o professor preparem seus alunos para a existência autônoma, o que requer mudar estruturas sociais e tradições pedagógicas autoritárias. Em outras palavras, mais do que nunca, a educação em valores deve ser uma prioridade.

“A escola que se preocupa apenas com os conteúdos disciplinares não está cumprindo os objetivos a que ela mesma se propõe. Trabalhar os valores éticos e de cidadania é uma realidade que se impõe á educação contemporânea”, diz.

Mas, a boa notícia: sempre é tempo de mudar. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista sobre o tema, que foi abordado nos Seminários SM de Educação realizados em abril.

SMO que é autonomia? Como o senhor definiria um aluno e um professor autônomos?

Ulisses Araújo – Muita gente confunde autonomia com anomia, achando que o sujeito autônomo é aquele que faz o que acha que é certo, de sua própria cabeça. Quando se estuda a etimologia dessa palavra, descobre-se que nomia vem do grego nomos, que significa regras. Assim, para o sujeito autônomo existem regras, que são sociais. Portanto, o sujeito autônomo, seja ele professor ou estudante, é aquele que conscientemente faz o que é certo, considerando as regras, leis e normas da sociedade. Ele considera, assim, o outro em seus pensamentos e ações.

SMA questão da autonomia se cruza, em algum momento, com o tema da indisciplina? Essas duas questões são partes de um mesmo problema ou coisas completamente diferentes?

Ulisses Araújo – O sujeito indisciplinado, em geral, é o sujeito da anomia, que não considera os outros, o coletivo, em seus pensamentos e ações. Como é egocêntrico e pensa somente em seus próprios interesses, faz o que lhe dá na cabeça ou o que lhe dá prazer. Só temos que ter cuidado para não achar que todo ato de indisciplina é anomia, pois muitas vezes um ato de rebeldia pode ser para lutar contra posturas e estruturas autoritárias, imorais. Assim, a indisciplina muitas vezes é manifestada pelo sujeito autônomo. A chave para se diferenciar isso é, novamente, a ética e a justiça.

SMTradicionalmente, nossa escola não aponta para a formação crítica. O próprio formato das aulas expositivas, não dialogadas, acaba por formar gerações de alunos com baixa autonomia no processo de aprendizagem. Trata-se de uma questão didática (e assim pode ser resolvida com novas estratégias) ou está ancorada numa cultura pedagógica de transformação mais difícil?

Ulisses Araújo – A premissa é verdadeira, embora não seja a única para explicar a baixa autonomia das pessoas. Afinal, uma pequena parte de nossas vidas se passa na escola. A sociedade em geral é autoritária, as relações familiares também, em geral, são autoritárias. Por isso, esse tipo de transformação leva gerações para se efetivar. Mas tudo na vida se aprende fazendo, e não estudando teorias. Por isso, há de se começar a ampliar os espaços de diálogo, de modelos pedagógicos colaborativos e cooperativos, de respeito e ética entre as pessoas para que as novas gerações transformem essa realidade. Aos profissionais da educação cabe entender isso como inerente a seu papel político-social de agente educativo.

SM Os professores do Ensino Médio recebem alunos que passaram ao menos nove anos em uma escola mais passiva e fechada. É possível que o professor do Ensino Médio consiga reverter o processo e estimular a autonomia do pensamento e da ação no aluno?

Ulisses Araújo – Valores são construídos durante toda a vida. No leito de morte uma pessoa pode ressignificar os seus valores em funções de determinadas experiências de vida. Por que não na adolescência ou no Ensino Médio? É um equívoco, generalizado, achar que "pau que nasce torto morre torto". Pelo contrário, quanto mais velha a criança e o adolescente, mais ele pode construir valores eticamente desejáveis, se tiver oportunidades de experienciar ambientes democráticos, dialógicos.

SMDo seu ponto de vista, como o professor pode trabalhar sobre sua própria autonomia? Ou seja, como ele pode buscar se aprimorar do ponto de vista pessoal e profissional de forma com que se torne menos refém de teorias, de burocracias e de práticas arraigadas para encontrar outra forma de educar?

Ulisses Araújo – De novo... só se aprende fazendo. Assim, a melhor formação para o professor é ele criar espaços e situações de diálogo, ativas, em que estudantes e professores vivenciem ambientes éticos e de construção da cidadania. Ele forma os seus alunos ao mesmo tempo que forma a si próprio. Daí a importância de se criar esses espaços na escola.

SMVivemos tempos em que se fala muito de rendimento escolar, desempenho acadêmico... É verdade que a escola não anda cumprindo bem a função de ensinar conteúdos. Mas, do seu ponto de vista, a questão do trabalho com valores deve ficar no mesmo plano de importância?

Ulisses Araújo – Toda escola, pública e privada, escreve em seu político-pedagógico, mesmo que utilizando palavras diferentes, que tem como missão formar para a cidadania. Assim, a escola que se preocupa apenas com os conteúdos disciplinares não está cumprindo os objetivos a que ela mesma se propõe. Achar que à escola cabe apenas ensinar esses conteúdos é um equívoco, fruto de uma sociedade que não existe mais, em que às mulheres cumpria o dever de ficar em casa cuidando da educação moral, enquanto a escola podia se dedicar ao ensino das disciplinas. Essa sociedade não existe mais, graças aos avanços da democracia e da inclusão social, e a escola precisa estar conectada com essa nova realidade. Assim, trabalhar os valores éticos e de cidadania é uma realidade que se impõe à educação contemporânea.

SMPor fim, essas questões sobre as quais estamos falando são temas típicos do Brasil ou se vive questões semelhantes em outras partes do mundo?

Ulisses Araújo – O ser humano, com igualdades e diferenças que lhes caracteriza, é o mesmo em todo o mundo. Todos temos dois olhos, uma boca e um nariz, mas ao mesmo tempo somos todos diferentes. As questões apontadas acima são inerentes aos processos de relações entre os seres humanos em todas as culturas. Suas formas de manifestação variam, diferem. Mas não existe cultura sem indisciplina, sem violência, sem amor, sem cooperação. Assim, essas questões estão na pauta de debates das escolas de todo o mundo, com nuances e diferenças, mas estão presentes.

 


Ulisses Ferreira de Araújo é pesquisador na área de Educação e da Psicologia, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP, e livre-docente pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, com Pós-doutorado nas Universidades de Barcelona, Espanha (2004) e Stanford, EUA (2008). Desde 2003, é consultor do Ministério da Educação para o "Programa Ética e Cidadania: construindo valores na escola e na sociedade". Foi conferencista nos Seminários SM de Educação, realizados em abril de 2011 nas cidades de Brasilia (DF), Goiânia (GO) e Ribeirão Preto (SP). Para conhecer outras iniciativas de Edições SM em prol da educação, visite o site: www.edicoessm.com.br.


 

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