Transformar o professor, mudar a escola
Entrevista com Vasco Moretto, conferencista no Fórum SM de Educação, realizada em maio de 2011 em São Paulo e Rio de Janeiro.
Professor, pesquisador, autor, assessor pedagógico e consultor, Vasco Moretto tornou-se uma das vozes mais influentes junto aos professores da rede pública e particular, em todo o Brasil. Suas conferências conseguem responder a demandas concretas do educador, sem perder a perspectiva das transformações mais profundas da Educação.
Veja abaixo a entrevista que Vasco Moretto concedeu à SM, antes de sua apresentação no Fórum SM da Educação. Tecnologia, comportamento, competência, papel da escola e do professor são alguns dos temas enfocados com sinceridade e, ao mesmo tempo, esperança por um autodeclarado “otimista inveterado”.
SM – O senhor acredita que o perfil dos jovens do hoje (que alguns chamam de Geração Y, digital etc.) vai acelerar as respostas das escolas às demandas do mundo contemporâneo? Em outras palavras, para educar as novas gerações os professores terão de rever suas estratégias e suas concepções de educação?
Vasco Moretto – Neste aspecto há uma aparente incoerência entre o papel da escola e sua real ação. A educação escolar deveria antever as necessidades da sociedade e preparar os profissionais e os cidadãos para uma sociedade em transformação. No entanto, o que se observa é uma educação escolar em que as mudanças vão a reboque das transformações sociais. No caso específico da geração nativa no mundo digital há um tremendo conflito com os agentes da escola que são migrantes para este mesmo mundo. Para gestores e professores, manter “a tradição”, em termos de conteúdos e de metodologias, parece ser mais seguro e mais eficaz. É para isso que os professores foram preparados, é nisso que sentem segurança. Para amenizar o conflito (quase nunca resolvê-lo) mascara-se o problema colocando salas de informática sem a correspondente cultura digital. Na verdade, a escola precisa exercer uma dupla função: a conservadora e a transformadora. Conservadora do contexto histórico-social de seu grupo e transformadora para uma contextualização para o novo ambiente que se configura para esta nova geração. Na prática, parece que a escola está mais empenhada no primeiro papel do que no segundo. Seu discurso, no entanto, é do papel transformador.
"A mudança na educação escolar não se faz por rupturas
e sim por transformações"
SM – A seu ver, é possível que, dentro das mesmas estruturas globais das escolas (seja em relação aos tempos escolares, seja em relação aos espaços) é possível ao professor trabalhar com mais eficácia, ou seja, obter melhores resultados na aprendizagem dos seus alunos com novas estratégias didáticas?
Vasco Moretto – Precisamos pensar que a mudança na educação escolar não se faz por rupturas e sim por transformações. Não é simplesmente dizer que “a escola tradicional não serve” e propor uma “nova escola”. Para isso precisaria uma mudança radical na preparação dos professores, que são formados em Instituições de Ensino Superior, que, por sua vez, seguem um paradigma tradicional, ensinando-o, criticando-o, mas não oferecendo proposta para a mudança por ruptura. No meu entender, é perfeitamente possível a escola e os agentes educacionais trabalharem dentro das mesmas estruturas globais de hoje, desde que haja uma mudança de paradigma epistemológico, ou seja, desde que haja uma nova visão do que seja o conhecimento socialmente construído e como o aluno dele se apropria. Esta é a transformação maior e mais urgente que se espera. Pode-se continuar a ter salas de aulas, aulas expositivas, dias de provas, provas escritas etc. desde que tudo isso seja um meio a serviço do novo paradigma da educação, que é a construção interativa do conhecimento, em busca do desenvolvimento de competências.
SM – Do seu ponto de vista, que características devem ter aulas e professores inspiradores? Existem traços comuns que unem o que alguns chamam de “aulas de sucesso”?
Vasco Moretto – Temos que distinguir o que podemos chamar de real sucesso e pseudossucesso. Na visão tradicional da educação escolar, o sucesso era medido por provas (em geral escritas) onde o aluno respondia exatamente o que lhe foi ensinado. As listas enormes de exercícios que o adestraram para responder questões colocadas em provas, muitas vezes da mesma forma como foram propostas nas listas. Era comum o professor, no intuito de estimular o estudo dos alunos, dizer: “Façam todos os exercícios que passei. Cinco deles vão cair na prova”. E os alunos faziam, as questões eram propostas na prova, os alunos respondiam corretamente, obtinham notas boas e exibiam com orgulho seus boletins dizendo: “minha avaliação foi um sucesso!”. Sucesso ou pseudossucesso? O mesmo fenômeno de adestramento ainda se observa em grande escala nos “cursinhos preparatórios para vestibulares”, onde o professor show é o que faz sucesso (ou pseudo?) quando inventa músicas, conta piadas, faz associações hilariantes para que os alunos gravem fórmulas de matemática, física ou química etc. Se os alunos, por meio destes recursos, passam nos vestibulares, podemos negar que tiveram sucesso naquilo que se propuseram? Certamente que não. No entanto, para uma nova educação, onde o aluno precisa ser cada vez mais preparado para resolver situações complexas novas, ainda não vistas, que constituem desafios de uma sociedade da informação extremamente dinâmica em suas variações, é preciso uma nova visão do que seja o conhecimento, do que seja aprender e do que seja ensinar.
SM – Sempre que se fala em mudanças na educação, em primeiro lugar se pensa no professor. O senhor acredita que a geração de professores que aí está é capaz de protagonizar processos de transformação na escola? Que condições lhes deveriam ser dadas para isso?
Vasco Moretto – Não tenho dúvidas que qualquer mudança na educação tem no professor seu principal pilar. Os gestores têm seu papel importante, mas o professor tem o papel fundamental, uma vez que é ele que está agindo diretamente com o objeto da educação: o aluno. Penso que esta geração de professores ainda está muito longe de protagonizar uma profunda transformação na escola. Não que não tenha inteligência, potencial, capacidade intelectual. Simplesmente os professores não foram preparados para o novo momento da educação. Cobra-se deles uma competência profissional para a qual não foram preparados. E, mais, não há movimentos profundos para mudança nestas condições. A profissão não é valorizada, os salários não são compensadores em função do tipo de trabalho, a sobrecarga de trabalho para melhorar seus rendimentos os obriga a trabalhar em dois ou três turnos diários. E quando irão se atualizar? Quando irão debater em comunidades de aprendizagem com outros professores sobre os problemas enfrentados e sobre novas epistemologias e/ou novas metodologias para a ação pedagógica? Seguidamente, quando o professor tem algumas horas destinadas a isso por contrato, prepara provas, corrige provas, quando não corre para outra escola para “dar mais algumas aulas”. E a formação continuada, onde fica?
"Para uma nova educação, onde o aluno precisa ser cada vez mais preparado para resolver situações complexas novas,
é preciso uma nova visão do que seja o conhecimento"
SM – Por suas atividades profissionais e pelo grande prestígio que adquiriu, o senhor observa a educação brasileira de um ponto de vista privilegiado. Ouve professores de diferentes regiões e de alguma forma sente o pulso da escola. Partindo dessa premissa, o senhor diria que temos avançado? Há um movimento positivo na educação? Se sim ou se não, a que se deve? Às políticas públicas? Ao interesse dos docentes? Às premências do mundo?
Vasco Moretto – Gostaria de continuar a ser o que sempre fui: um otimista inveterado. No entanto, as centenas de palestras que tenho ministrado nestes últimos anos em todos os recantos do Brasil me levam a dizer que a ruptura com o tradicional não existe (possivelmente nem sei se deveria existir!), e a transformação de que falei acima também não me parece estar tão acelerada quanto deveria estar. Encontrei em minhas andanças pelo Brasil, algumas ilhas de excelência neste movimento de transformação. Há realmente algumas ações positivas. Nunca se viram tantos congressos para educadores, seminários de estudos, fóruns de debates, oficinas para avaliação, como nos últimos tempos. Mas os resultados estão aquém do esperado. Num congresso, os professores se empolgam, fazem um grande esforço de investir seu parco dinheirinho na compra de livros, saem com intenções sinceras para mudanças. Mas quando voltam à realidade de suas escolas, sem ações concretas para dar a continuidade às boas ideias e às boas intenções, o professor esmorece e volta ao que era antes. Os anos passam e as transformações profundas não ocorrem. Há transformações localizadas, fruto de gestores conscientes e competentes que contagiam suas equipes para mudanças. Em sua maior parte, no entanto, as mudanças são fruto de iniciativas individuais ou de pequenos grupos de professores. Ainda sou otimista, pois encontro de tempos em tempos grupos maravilhosos de trabalho. Da mesma forma, fico entristecido, quando vejo grupos de professores que se inscrevem (ou são inscritos compulsoriamente por seus gestores) em congressos e, enquanto um grande grupo participa das atividades, outros passeiam, reúnem-se em grupo no “fundão da sala” e conversam, riem e esperam o tempo passar. Investimento perdido. Esta é uma dura realidade com a qual eu e outros palestrantes temos vivido e comentado. Que mudança se pode esperar diante da postura destas pessoas? Podemos culpar o governo, as políticas públicas, os gestores? Com meus mais de cinquenta anos de magistério, e nesta atividade constante de assessoria pedagógica, tenho uma convicção: as mudanças profundas da educação só ocorrerão quando cada professor assumir uma atitude pessoal e profissional diante nas exigências de uma nova sociedade de céleres transformações. Eu diria: é preciso uma mudança ética de cada professor. Com esta afirmação, no entanto, não quero colocar toda a responsabilidade no professor. Mas quero enfatizar que grande parte está mesmo nas costas do professor.
"O viés econômico está e estará sempre presente
na formação dos educandos"
SM – Por fim: quando se fala hoje em qualidade de ensino, imediatamente se associa mercado de trabalho, economia globalizada etc. O senhor não teme que esse viés econômico acabe por “encurtar” os objetivos da boa educação, ainda que pressione por mais eficiência na aprendizagem de linguagens e matemática? Qual deve ser o papel mais nobre da escola na sociedade do século XXI?
Vasco Moretto – É indiscutível que os alunos em geral têm sido estimulados a estudar “para ser alguém na vida”, “para ter um bom emprego”, “para ter uma boa posição social”, “para ter bom carro e boa casa” etc. É isso que ele ouve com mais frequência a título de ensino. Ou seja, o viés econômico está e estará sempre presente na formação dos educandos. E quando os jovens chegam ao mercado de trabalho, não encontram emprego. Nós os estamos enganando ou iludindo? Para que isso não ocorra, o que precisamos discutir com maior ênfase é o sentido da expressão “qualidade de ensino”. No meu entender, e pensando de maneira simplificada, a qualidade da educação (ou do ensino) é aquela que ajuda o educando a desenvolver competências para abordar e resolver situações complexas que a vida lhe oferece. Estas situações podem vir em vários planos. A vivência plena da cidadania é um deles. Para isso, a qualidade na educação visa a ajudar o sujeito a desenvolver sua competência interpessoal e intrapessoal. A formação, neste foco, oportunizará a construção de valores, entre eles a vivência da ética e da moral no contexto das relações sociais. Mas a qualidade da educação tem também, e de maneira muito forte, a obrigação de preparar o profissional capaz de exercer sua profissão com competência. A escola não pode, neste contexto, favorecer o exercício da mediocridade, mas sim a exigência da competência cognitiva. Neste sentido, não podemos dizer que a escola tenha um papel “mais nobre” que outro. Se a sociedade exige cada vez mais a competência em todos os níveis, a escola precisa responder a esta exigência. Quando alguém procura um médico, ou um dentista, ou um advogado, ou um motorista etc. ele quer que o sujeito seja competente no que faz. E quando falha, a pecha vem logo classificando-o de “incompetente”. Podemos dizer o mesmo da escola e, sobretudo, do professor: o aluno tem o direito de ter em sala de aula um professor competente no amplo sentido da palavra, ou seja, como educador e como professor.
Vasco Moretto é físico licenciado pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em avaliação pela Universidade Católica de Brasília e mestre em Didática das Ciências pela Universidade Laval, de Quebec, Canadá. É autor de diversos livros, dentre eles Prova - Um momento privilegiado de estudo. Foi conferencista no Fórum SM de Educação, realizado nos dias 4 e 5 de maio de 2011. Para conhecer outras iniciativas de Edições SM em prol da educação, visite o site: www.edicoessm.com.br.