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A supremacia do mercado na política e os movimentos sociais na América Latina: questões midiátic
Oct 05, 2007
A partir de um resgate conceitual sobre modernidade e pós-modernidade, discute-se a relação entre movimentos sociais emergentes e os meios de comunicação na sociedade contemporânea.
Muito se fala sobre o fim da modernidade e das utopias com o advento da pós-modernidade. O projeto da modernidade, caracterizado de modo sucinto pela supremacia da razão como instrumento de explicação e transformação da realidade, teria surgido com o Iluminismo francês, frente às trevas que dominaram a Europa durante a Idade Média. Surge a noção de progresso como sinônimo de avanço. Mas como explicar a barbárie ainda hoje existente? Como compreender a dominação dos homens sobre homens, de Estados sobre Estados? Parafraseando o título do consagrado filme dirigido por George Steves: para onde caminha a humanidade?
Resgate conceitual
Antes de definirmos modernidade em oposição à pós-modernidade, é fundamental distinguir as subcategorias inerentes a cada um desses conceitos, em função dos sufixos empregados: dade, ismo e ização. Ou seja, por modernidade (ou pós-modernidade), entende-se um modo de produção ou sistema de governo em uma dada sociedade; modernismo (ou pós-modernismo) refere-se a um movimento estético, nos campos da arte, arquitetura ou cultura, ou seja, trata-se de uma faceta da modernidade (ou pós-modernidade); e, por modernização, o processo, o movimento, o planejamento para sair de um nível e chegar a outro.
Esclarecidos esses aspectos, passemos então às diferentes acepções de modernidade e pós-modernidade, tarefa árdua frente à amplitude, ambivalência e polissemia que envolve esses conceitos.
Sergio Paulo Rouanet defende que a modernidade não acabou. O que acontece, na atualidade, é uma crise do projeto moderno de civilização. Seus três pilares – universalidade, individualidade e autonomia – precisam, portanto, ser resgatados.
A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independentemente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais. A individualidade significa que esses seres humanos são considerados como pessoas concretas e não como integrante de uma coletividade e que se atribui valor ético positivo à sua crescente individualização. A autonomia significa que esses valores humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material. (ROUANET, 1993, p. 9)
Para este autor, o Brasil vive uma “revolta antimoderna que hoje grassa no mundo sem jamais termos vivido a modernidade” (idem: 10): o universalismo é substituído pelo nacionalismo cultural; a individualidade é sobreposta por um hiperindividualismo exasperado; a razão secular sucumbe à re-sacralização do mundo. O resultado é a desilusão com as instituições democráticas, a carnavalização da política, a apatia frente à política e a descrença no sistema econômico. O que se vê, portanto, é o colapso do projeto de civilizatório da modernidade, ou – como designa Rouanet –, a barbárie.
As alternativas frente a ela seriam a) o desprezo pela razão e pelos “bárbaros”; b) a luta por um projeto antimoderno de civilização; e c) a construção de um projeto neomoderno. A primeira alternativa é descartada pelo desprezo à razão e seu perigo. A segunda, por seu risco de ampliar a barbárie, ao apregoar a antítese do projeto moderno, como a autoridade em vez de liberdade, a religião em vez do desencantamento, e a estratificação em vez da mobilidade sócio-econômica. Seria, enfim, um retrocesso. A saída, para Rouanet, é “resgatar o que existe de positivo na modernidade, corrigindo suas patologias” (idem: 14). Ou, como o autor designa, é preciso resgatar os três princípios que marcaram o Iluminismo: seu caráter universalista (todos os homens são iguais), seu foco individualizante (o homem só existe como indivíduo, o que lhe garante também direitos e não apenas obrigações) e a autonomia intelectual (a razão como libertadora dos preconceitos), política (liberdade de ação do homem no espaço público) e econômica (direito a todos à segurança material).
Na prática, o projeto modernidade degringolou em vários aspectos, tanto nos regimes liberais como socialistas: a igualdade não é universal; o individualismo degenerou na apologia do interesse pessoal e do prazer hedonístico; a ciência justificou a eugenia e a xenofobia, deixando de ser autônoma e passando a servir interesses industriais e militares; as grandes democracias geraram um homem cada vez mais uniforme e conformista. Ainda assim, houve aspectos positivos e a partir do confronto com a experiência, Rouanet propõe reconstruir a “idéia iluminista“:
Para ela, (1) todos os homens e mulheres, de todas as nações, culturas, raças e etnias, (2) desprendendo-se da matriz coletiva e passando por processos crescentes de individualização, devem alcançar (3) a autonomia intelectual, ou seja, o direito e a capacidade plena de usar sua razão, libertando-se do mito e da superstição, sujeitando ao crivo da razão todas as tradições, seculares ou religiosas, problematizando todos os dogmas, criticando todas as ideologias, e desenvolvendo livremente a ciência, o pensamento especulativo e criatividade artística, o que pressupõe um sistema cultural que tenha institucionalizado e dado condições efetivas de exercício à liberdade de pensamento e de expressão, (4) a autonomia política, ou seja, o direito e a capacidade plena de participar dos processos decisórios do Estado, o que pressupõe um sistema político que tenha institucionalizado e dado condições efetivas de funcionamento à democracia e aos direitos humanos, e (5) a autonomia econômica, ou seja, o direito e a capacidade plena de obter, sem prejuízo para os outros indivíduos e sem danos para o meio ambiente, os bens e serviços necessários ao próprio bem-estar, o que pressupõe um sistema econômico que tenha institucionalizado e dado condições efetivas de funcionamento aos direitos dos agentes econômicos, dentro dos limites compatíveis com os objetivos superiores da justiça social e da preservação da natureza. (1993, p. 33).
Rouanet não vê na idéia iluminista apenas um “tipo ideal”, no sentido weberiano, cuja função é apenas heurística. Para o filósofo brasileiro, ela tem uma função prática, um caráter normativo, devendo intervir na realidade. Caberia, a cada um de nós, escolher entre o iluminismo ou a barbárie. Antes que seja tarde.
David Harvey corrobora a associação de Rouanet entre modernidade e iluminismo, mas argumenta que o próprio cerne do iluminismo é a mudança, o fugidio, a transitoriedade e o fragmentário “como condição necessária por meio da qual o projeto modernizador poderia ser realizado” (1992, p. 23). O que se verificou, de fato, foi o triunfo da racionalidade técnica/instrumental (define os meios para atingir os fins) sobre a formal/substantiva (cujos fins são os valores), o que “não leva à realização concreta da liberdade universal, mas à criação de uma ‘jaula de ferro’ da racionalidade burocrática da qual não há como escapar”, conforme defende Bernstein (apud Harvey, Op. Cit, p. 25).
Para Harvey, o modernismo foi um movimento estético da vida moderna que se preocupava com a linguagem e que passou por diferentes etapas, sendo o pós-modernismo uma espécie de reação do modernismo, ou de afastamento dele. Enquanto o modernismo se caracteriza por metanarrativas lineares e universalizantes, o pós-modernismo rompe com esse ideal de totalidade, partindo para o pluralismo. Mas, segundo Harvey, o pós-modernismo não significa uma nova era na civilização humana, mas apenas um estágio da própria modernidade. O pós-modernismo está inscrito na própria modernidade. O que mudou foi a estrutura do sentimento e da sensibilidade artística. Mas não passa de um movimento estético e não de uma nova estrutura social. “O pós-modernismo não assinala senão uma extensão lógica do poder do mercado a toda a gama da produção cultural”, afirma Harvey (idem, p. 64). Ou, como afirma Jameson (apud Harvey, Op.Cit., p. 65), “é a lógica cultural do capitalismo avançado”.
Antony Giddens referenda a idéia de que não estamos entrando na pós-modernidade, ao contrário do que apregoa o pós-modernista Lyotard, para quem a modernidade configura-se como um estilo de vida ou organização social que emergiu a partir do século XVII e a pós-modernidade, como um deslocamento da fé no progresso planejado e o fim da ciência como forma privilegiada de conhecimento. Para Giddens, estamos apenas vivendo as próprias conseqüências da modernidade, que tem como características a descontinuidade, com uma ordem “multidimensional”. Segundo este autor, “nós não nos deslocamos para além da modernidade, porém estamos vivendo precisamente através de uma fase de sua radicalização” (1991, p. 57). Não se deve ver as mudanças ocorridas (nova agenda social e política, negação da versão de progresso e de que é possível a certeza) como uma nova fase: são apenas conseqüências da própria modernidade, resultantes da auto-elucidação do pensamento moderno.
Alain Touraine argumenta que, apesar de colocar o indivíduo no centro, a modernidade acabou descartando o sujeito. Ele afirma que não há sentido em se chamar de pós-moderna a concepção de sociedade e pensamento que marcou o último século. “A crítica do modernismo, ou seja, da redução da modernidade à racionalização, não deve conduzir a uma posição anti ou pós-moderna. Trata-se, ao contrário, de redescobrir um aspecto da modernidade que foi esquecido ou combatido pela racionalização triunfante” (1991, p. 229). Touraine prefere designar por “nova modernidade” essa etapa da sociedade, marcada pela tensão entre a razão e o sujeito, vinculando racionalização e subjetivação.
Zygmunt Bauman também não crê que a pós-modernidade seja uma era que suceda a modernidade:
A pós-modernidade é a modernidade que atinge a maioridade, a modernidade olhando-se à distância e não de dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas, psicanalisando-se, descobrindo as intenções que jamais explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes e se cancelam. A pós-modernidade é a modernidade chegando a um acordo com a sua própria impossibilidade, uma modernidade que se automonitora, que conscientemente descarta o que outrora fazia inconscientemente. (1999, p. 288).
Diferentemente dos autores vistos acima, Boaventura Santos acredita que a modernidade já se esgotou e que estamos a viver um período de transição para um novo mundo que, para facilitar sua compreensão, pode ser denominado de pós-modernidade. Isso porque “o paradigma cultural da modernidade constituiu-se antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes de este último deixar de ser dominante. A sua extinção é complexa porque é em parte um processo de superação e em parte um processo de obsolescência” (Santos, 1996, p. 76).
Para melhor compreender sua análise, cumpre resgatar como o autor define a modernidade: um projeto rico e ao mesmo tempo contraditório, baseado em dois pilares: a regulação e a emancipação.
Todo acto de conhecimento é uma trajectória de um ponto A que designamos ignorância pra um ponto B que designamos por conhecimento. No projeto da modernidade podemos distinguir duas formas de conhecimento: o conhecimento-regulação cujo ponto de ignorância se designa por caos e cujo ponto de saber se designa por ordem e o conhecimento-emancipação cujo ponto de ignorância se designa por colonialismo e cujo ponto de saber se designa por solidariedade. (Santos, 2000, p. 29).
Cada um desses pilares é constituído por três princípios. O pilar da regulação, pelos princípios do Estado, do mercado e da comunidade, e o pilar da emancipação, por três lógicas de racionalidade: a moral-prática da ética e do direito; a racionalidade cognitivo-institucional da ciência e da técnica; a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura. Seu sistema de análise pode ser assim resumido:
Pilar (formas de conhecimento) |
Princípios/lógicas |
Regulação (da ignorância/caos para o saber/ordem) |
Estado |
Mercado | |
Comunidade | |
Emancipação (da ignorância/colonialismo para o saber/solidariedade) |
Racionalidade moral-prática (ética, direito) |
Racionalidade cognitivo-instrumental (ciência) | |
Racionalidade estético-expressiva (arte e literatura) |
Cada um dos princípios de um pilar se articula diretamente com os princípios do outro pilar. A lógica de emancipação moral-prática está diretamente ligada à lógica do Estado (cabe a este definir e fazer cumprir um mínimo ético, sendo, portanto, dotado do monopólio do direito); a racionalidade cognitivo-instrumental corresponde ao princípio do mercado (a ciência converte-se em força produtiva); e a racionalidade estético-expressiva vincula-se ao princípio da comunidade (pois nela condensam os ideais de identidade e de comunhão). As possibilidades do projeto da modernidade são infinitas e, por isso, contemplam tanto o excesso como o déficit de seu cumprimento.
Por um lado, cada um destes pilares assenta em lógicas ou princípios cada um deles dotado de uma aspiração de autonomia e de diferenciação funcional que, por outra via, acaba também por gerar uma vocação maximalista, quer seja, no caso do pilar da regulação, a maximização do Estado, do mercado ou da comunidade, quer seja, no caso do pilar da emancipação, a estetização, a juridificação ou a cientificização da realidade social. Mas a dimensão mais profunda do défice parece residir precisamente na possibilidade de estes princípios e lógicas virem humildemente a dissolver-se num projecto global de racionalização da vida social prática e quotidiana. (Santos, 1996, p. 78).
A regulação, portanto, ao invés de proporcionar harmonia entre os princípios de Estado, do mercado e da comunidade, acabou por se reduzir à supremacia do mercado. Ainda que contraditório, o princípio da comunidade ficou reduzido ao conceito de sociedade civil, em oposição ao Estado, e sumariamente integrado pela composição de interesses individuais. No caso da emancipação, o que se vê também é a subordinação da ciência a serviço do mercado e da estética como ferramenta de manipulação política. No campo da moral, temos uma micro-ética do indivíduo.
A supremacia do mercado
A ciência, a estética e a moral, que poderiam ser os princípios da construção de uma sociedade mais justa e livre, como apregoada pelo projeto modernista, vêem-se reduzidas a instrumentos da racionalidade técnica para colonização dos princípios do Estado e da Comunidade.
Em A crítica da razão indolente, o autor aponta como principal condição sócio-cultural do final do século XX a absorção do pilar da emancipação pelo da regulação.
O que hoje se vê é o excessivo princípio de mercado. Ou seja, houve uma redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e a redução da regulação ao princípio de mercado. A conseqüência é que ao invés de reduzir a regulação, há cada vez mais rigidez e inflexibilidade.
A absorção da emancipação pela regulação é fruto da hipercientificização da emancipação e da hipermercadorização da regulação. Daí a sensação permanente de insegurança, pela assimetria entre a capacidade de agir e a de prever. Vivemos, portanto, um momento de transição, marcado pela supremacia da racionalidade científica e seu modelo totalitário, que nega o caráter racional de todas as formas de conhecimento que não se pautam por seus princípios epistemológicos e regras metodológicas (cf. p. 61). Vivemos uma profunda e irreversível crise epistemológica do paradigma dominante. Com os avanços verificados na ciência (Einstein rompe com a noção de espaço-tempo newtoniano no campo da macrofísica; na microfísica, a mecânica quântica demonstra que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele), vemos a inviabilidade do determinismo mecanicista, ou seja, a totalidade do real não é a soma entre as partes, bem como que a distinção entre sujeito e objeto perde seus contornos dicotômicos, assumindo a forma de um continuum.
Essa crise dos paradigmas gerou um interesse filosófico sobre a prática científica e reflexões epistemológicas, tais como o questionamento dos conceitos de leis, se essas têm caráter probabilístico, por exemplo, e a crítica à ciência por seu caráter quantitativo, que ganha em rigor, mas perde em riqueza (o conhecimento científico fecha a porta a outros saberes).
Emergência de um novo paradigma
Assim, Santos aponta para a emergência de um novo paradigma: “de um conhecimento prudente para uma vida decente” (idem, p. 74). Ou seja, busca reconstruir a idéia e prática de transformação social emancipatória, contra a resignação e alienação social presentes. Sua teoria “foi desenvolvida para lutar contra o consenso como forma de questionar a dominação e criar o impulso de lutar contra ela” (idem, p. 35).
No campo da regulação, é preciso resgatar o princípio da comunidade e, no da emancipação, a racionalidade estético-expressiva, hoje reduzida ao espetáculo, ou, como Guy Debord já apregoava na década de 60: vivemos em uma sociedade do espetáculo, sob a égide da lógica publicitária. Suas características fundantes são o isolamento (dependemos dos meios para produzir a realidade) e a alienação (perdemos a capacidade de produzir a própria imagem e o controle sobre nossos gestos). Tudo é imagem, para provocar o consumo e para manutenção do status quo.
Para Santos, urge “reavaliar o conhecimento-emancipação e conceder-lhe primazia sobre o conhecimento-regulação” (idem, p. 79). Dessa maneira, será por meio da supremacia da solidariedade como saber hegemônico, que se poderá construir um novo paradigma.
Nesse sentido, Boaventura Santos propõe duas estratégias: aceitar e valorizar o caos [1] (em oposição à ordem do conhecimento regulação) e revalorizar a solidariedade como forma de saber (o conhecimento obtido no processo, sempre inacabado de nos tornarmos capazes de reciprocidade através da construção e do reconhecimento da intersubjetividade). Sua proposta é uma oposição à lógica atual:
Não devemos esquecer-nos de que, dada a hegemonia do conhecimento-regulação, a solidariedade é hoje considerada uma forma de caos e o colonialismo uma forma de ordem. Assim não podemos prosseguir senão pela via da negação crítica. (idem, p. 81).
A ciência moderna deve, portanto, voltar-se ao senso comum, ou seja, transformar o conhecimento científico num novo senso comum emancipatório e libertador.
Esse novo senso comum assenta-se em três dimensões: a ética, a política e a estética. Em termos éticos, a solidariedade, em oposição à micro-ética liberal; na política, a participação, ou “a repolitização global da vida coletiva” (p. 113); em termos estéticos, um senso comum reencantado, cuja marca é o prazer (abominado pela ciência), sem a oposição entre arte autônoma e o mundo real.
A partir desse novo senso comum, as formações sociais capitalistas substituiriam o conhecimento-regulação pelo conhecimento-emancipação:
O conhecimento emancipatório pós-moderno parte do princípio de que só haverá emancipação se, nestes domínios tópicos básicos, os topoi que exprimem as relações sociais dominantes forem substituídos por outros que exprimam a aspiração de relações sociais emancipatórias, assentes simultaneamente em políticas de reconhecimento (identidade) e em políticas de redistribuição (igualdade). Não pode haver emancipação, sem uma tópica de emancipação. E isso pressupõe a substituição, no espaço doméstico, de uma tópica patriarcal por uma tópica da libertação da mulher; no espaço da produção, a substituição de uma tópica capitalista por uma tópica eco-socialista; no espaço do mercado, a substituição de uma tópica do consumismo fetichista por uma tópica de necessidades fundamentais e satisfações genuínas; no espaço da comunidade, a substituição de uma tópica chauvinista por uma tópica cosmopolita; no espaço da cidadania, a substituição de uma tópica democrática fraca por uma tópica democrática forte; no espaço mundial, a substituição de uma tópica do Norte por uma tópica do Sul. (idem, 2000, p. 110).
Não vamos nos estender mais em sua proposta teórica. O que o sociólogo português propõe, em síntese, é uma alternativa ao projeto dominante da globalização neoliberal. Para ele, é possível uma globalização alternativa, de um “desenvolvimento democraticamente sustentável, das solidariedades e das cidadanias, de uma prática ecológica que não destrua o planeta, e de uma sociedade global que só aceite o comércio livre enquanto comércio justo” (2001). Utopia? Ou uma reflexão que atinge a todos nós e nos transforma em agentes de transformação social? Trata-se, outrossim, de uma utopia realista. Vários movimentos sociais na América Latina apontam nessa direção.
Movimentos sociais na América Latina
Vemos na atualidade a emergência de novos movimentos sociais na América Latina. Ao longo dos últimos anos, podemos destacar um amplo espectro, que vai desde a esquerda radical, com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), passando pelos movimentos indígenas camponeses dos Zapatistas no México, a Confederacíon Obrera Boliviana, o Movimento dos Sem-Terra (MST) no Brasil, os movimentos camponeses da Conaie (Confederación de Nacionalidads Indígenas Del Ecuador), setores da esquerda camponesa-nacionalista no Peru, setores dos sindicatos e desempregados da Argentina, entre muitos movimentos que vêm eclodindo. Ao mesmo tempo, assistimos à eleição de presidentes oriundos da esquerda de modo geral, como o brasileiro Lula, o venezuelano Hugo Chaves, o boliviano Evo Morales, o argentino Kishner e o equatoriano Rafael Correa.
Algo em comum perpassa todos esses movimentos: ao contrário do que afirmam diversas teses sobre a globalização, são fortemente orientados por nacionalismos, como afirma afirma Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida:
Movimentos sociais significam a ousadia, a criação de novos espaços de sociabilidade, a autonomia frente ao Estado e, sobretudo, a capacidade de fazer, de fato, o que não mais estaria ao alcance de partidos políticos que se pretendiam revolucionários: transformações sociais, mesmo que em dimensões menores. (Almeida, 2007, p. 64).
Não se trata meramente de movimentos centrados nas lutas de classes. Como explica o autor, a esfera de circulação livre de mercadorias cria “condições para que se constitua a ideologia da sociedade capitalista como uma comunidade de cidadão iguais e competitivos, comunidade fortemente territorializada e cuja soberania se expressa no Estado-nação” (idem, p. 67). Ou seja, nação e cidadania formam um par de sustentação da estrutura de dominação existente. Almeida distingue ideologia nacional do nacionalismo. Por ideologia nacional, entende a própria estrutura do modo de produção capitalista e o nacionalismo como o questionamento a esta ideologia. No primeiro caso, trata-se de um grupo de pessoas livres vinculadas a um território; no segundo, “a aspiração pela constituição ou reconstituição daquela comunidade” (idem, p. 69), que se revela pelo mal-estar das parcelas que não se sentem incluídas na comunidade nacional.
Vive-se, portanto, uma crise do capitalismo pela dificuldade de cumprir o projeto moderno de igualdade. É, portanto, uma crise de cidadania que “coloca em questão a própria comunidade nacional, abre espaços para a proliferação de inúmeros movimentos identitários (inclusive nacionalismos), com diferenciadas formas de apropriação da ideologia da cidadania.
Alguns movimentos têm caráter excludente, ou seja, visam excluir da cidadania os diferentes:
(...) são voltados para uma pretensa recomposição de redes de sociabilidade tidas como parcialmente harmônicas. São movimentos que querem restabelecer a ordem, o que seria obtido por meio da representação/rejeição de um outro, ou seja, de indivíduos e coletividades construídos como “externos” à sociedade e aos seus valores fundamentais. Quase sempre estes movimentos são portadores de um etnicismo explícito e/ou formulações moralizantes que reivindicam a posse das “virtudes” cívicas para “os verdadeiramente nacionais”. Não lutam pela conquista da cidadania, pois se julgam os únicos a merecê-la e, portanto, impelidos a defendê-la das ameaças deletérias dos que não possuem as condições mínimas para compartilhar igualitariamente do pertencimento à comunidade. (Almeida, 2007, p. 69).
Exemplo de movimento dessa ordem foi o “Cansei” – Movimento Cívico pelos Direitos dos Brasileiros –, lançado em agosto de 2007, que tem como principal bandeira a segurança pública: “O combate à violência e à criminalidade passa, certamente, pelo combate à impunidade”, afirma texto em sua homepage.
Excluído esse caso recente e outros similares, os demais movimentos sociais na América Latina têm outro caráter: a emancipação inclusiva do componente étnico da ideologia nacional. Daí, como afirma Almeida, seu caráter antiimperialista que “abre a possibilidade prática de superação da própria ideologia nacional, assumindo posições práticas internacionalistas” (p. 70).
Grande parte dos movimentos sociais tem forte composição indígena, com reivindicações de autonomia. A defesa de valores étnicos traz embutido um questionamento do capitalismo e de sua dimensão política, como a representação e o exercício do poder, com denúncia aos tratados de livre comércio, FMI, Banco Central, OMC e outras de suas instituições. Mas, ao invés de um caráter exclusivo (como faxina étnica), esses movimentos têm proposta inclusiva e de convívio com as diferenças.
Destaca-se, nesse sentido, a constituição da Alba – Alternativa Bolivariana para as Américas e o Caribe, que assim se define, em seu site:
La Alternativa Bolivariana para las américas y el Caribe (ALBA) es uma proposicíon de integración diferente. Mientras que el ALCA responde a los intereses del capital transnacional y persigue la liberalización aboluta del comercio em mercancias, servicios e inversiones, el ALBA pone el énfasi em la lucha contra la pobreza, la exclusión social y, por lo tanto, expresa los intereses de los pueblos latinoamericanos. (www.alternativabolivariana.org)
Nesse contexto, destacam-se, ainda outras iniciativas, como o Congreso Bolivariano de los Pueblos (www.congresobolivariano.org), o Movimento Zapatista no México (www.ezln.org), o Movimento dos Sem-Terra no Brasil (www.mst.org.br), os movimentos camponeses da Conaie (Confederación de Nacionalidads Indígenas Del Ecuador (www.conaie.org) e outros.
Esses movimentos – por mais diversas que sejam suas formas de organização, reivindicações e motivações –, enfrentam a repressão, denunciam políticas anti-sociais e recolocam as massas trabalhadoras e minorias como protagonistas da história. Ainda que não tenham conseguido constituir uma nova ordem social, evidenciam a crise da sociedade capitalista e desmentem o discurso do “fim da história”.
A questão midiática e comunicacional
O direito à manifestação desses grupos sociais, entretanto, não é geralmente considerada legítima pelo menos pela chamada grande imprensa nacional e internacional. A visão em geral na mídia é que se trata de grupos/governos “baderneiros”, “retrógrados”, “estatistas”, “populistas” e outros adjetivos que visam desqualificar tanto o poder executivo legitimamente eleito (como Hugo Chaves e Evo Morales) como os movimentos populares, que buscam novos espaços de sociabilidade e de autonomia, não mais restritos ao espaço político-partidário. Vê-se, em comum, uma cobertura pela grande imprensa que, a priori, já desqualifica a legitimidade de manifestações que contam com a participação das camadas mais carentes e depauperadas da população (grande parte das populações dos países citados) ou por minorias (de gênero, opção sexual, étnica, religiosa).
Independentemente das posições de cada um desses movimentos, o que se vê é a eclosão de manifestações que passam muitas vezes despercebidas, pois não ocupam espaços midiáticos de destaque (como as notícias sobre craques de futebol, top-models ou estrelas de cinema e tv). Ou, quando ocupam algum espaço, a imagem construída de suas realidades já é contaminada por recortes ideológicos que os classificam como desprezíveis.
Em uma sociedade em que o espetáculo é o maior produto de consumo – consumimos antes a imagem do que os produtos propriamente ditos –, essa visão uniforme transmitida pela mídia nada mais é do que a monopolização da aparência pelos meios de comunicação e pelas classes dominantes. Afinal, a grande mídia se reduz hoje a poucos grupos econômicos configurados quase como monopólios. Segundo Biernazki (2000),
cerca de 50 empresas são responsáveis pela imensa maioria da produção mundial de filmes e da produção de programas de TV, além de serem as donas de canais de transmissão por cabo e de sistemas de cabo e satélite; publicação de livros e revistas e produção de música. Várias das nove grandes corporações estão se aproximando ou já ultrapassam a marca de 50% de sua receita advinda de fora da sede de seus países (Biernazki, 2000, p. 52).
A conseqüência dessa enorme concentração e crescimento das transnacionais de comunicação, ocorridos a partir das décadas de 80 e 90, é que “o mercado local de idéias está sendo afetado” (ibidem: 52).
Ao discutir os avanços tecnológicos no campo da comunicação e seus efeitos para a cultura, a política e as relações sociais e econômicas, Ismar de Oliveira Soares (1996) alerta que:
a condição da informação no mundo está em processo de ser organizada e administrada por mais ou menos uma dúzia de superconglomerados dos media culturais, incluindo Time-Warner, Bertelsman, Hachette, Berlusconi, Maxwell, Murdoch, Televisa e possivelmente as Organizações Globo (Soares, 1996, p. 23).
Se, antes, a hegemonia das culturas regionais e nacionais era protegida pela distância e por barreiras geográficas, agora as identidades culturais podem ser moldadas pelas transmissões via satélite. O resultado dessa redução de fontes públicas de informação, que se sobrepõem às identidades regionais, seria o triunfo do discurso único no mundo moderno: são as empresas de comunicação que selecionam as informações e as apresentam como notícias.
Os dados, portanto, apontam para a supremacia dos meios de comunicação no controle da informação e na sua transmissão como produto de consumo, segundo a lógica publicitária e de mercado. A decorrência seria o esvaziamento do sentido e a perda da capacidade do indivíduo em ser ator de sua história.
Diante desse cenário de mercantilização da informação e do monopólio midiático, poderíamos supor que o advento da internet serviria para “quebrar” com as formas comunicacionais tradicionais, abrindo a possibilidade de uma comunicação em que cada indivíduo poderia configurar-se em um emissor no processo comunicacional.
Não queremos fazer aqui uma apologia da internet como um meio dialógico por si só. Estudos demonstram que, só pela internet, movimentos como o dos zapatistas no México (cf. Sandano, 2007), não teriam poder mobilizador sem o uso das mídias tradicionais (comunicação interpessoal, seja face-a-face, seja mediada por tecnologias como telefone, fax, e-mail, sites etc.). O advento da tecnologia nos permite hoje ter acesso e conhecimento a movimentos que antes estariam restritos à circunferência geográfica de seus efeitos políticos. Não podemos desconsiderar o potencial de mobilização política que o meio possibilita e que está mudando o fazer político na sociedade contemporânea.
Hoje é possível ter acesso às informações sobre os movimentos e campanhas políticas e a eles nos engajarmos, das mais diversas formas:
- Rastreamentos de informações/notícias (surfing): busca de informações aleatoriamente por sites preferidos ou por sites de busca (Google, Live Search, Wikepídia etc.).
- Cibercampanhas e webs de partidos e movimentos: manutenção de sites e blogs (sites de partidos e candidatos, Centro de Mídia Independente, Rebelion, Fórum Mundial Social, Telesur etc.).
- Ciberatores políticos e cibergrupos simpatizantes (social networking).
- Cibercadeias (correntes) de videos na rede (Youtube [2]).
- Ativismo de pressão política eletrônica (lobbies eletrônicos).
- Blogs e jornalismo-cidadão, político independente ou vinculado a partidos (Orkut).
- Spam, SMS e outras formas de emissão massiva de mensagens.
- Sites de representação virtual (Second Life [3]).
A tecnologia permite uma infinidade de opções. Sabemos que, por si só, a tecnologia não significa a ascensão de novas formas de comunicação política (além da restrição de acesso à internet [4], há ainda que se considerar o baixo índice de uso em termos de participação política – a grande maioria de acessos refere-se à busca de informações por esportes, variedades, vida em sociedade). Mas, se hoje dispomos de diferentes modalidades de comunicação, a questão fundamental que se coloca é como transformar o recurso tecnológico em potencial de mobilização política.
Neste momento, não há resposta que encerre a questão. Os caminhos estão apresentados e mostram pelo menos que não se limitam a uma única perspectiva que poderia ser qualificada como otimista ou pessimista. Apenas apontam para a emergência de um novo olhar frente aos meios de comunicação emergentes que, com seu potencial tecnológico e estético, possam permitir a construção de um novo paradigma comunicacional. A questão está diretamente relacionada ao próprio fazer jornalístico: prescindir das informações produzidas pelas mídias ativistas significa, em última instância, a negação do jornalismo como atividade mediadora entre atores e realidades diversas. Corre-se o risco de apenas reproduzir a voz única das potências econômicas de grupos midiáticos.
A ciência e a tecnologia (com a internet) e a nova estética dos meios tecnológicos (possibilitando uma nova forma de mediação, em que cada emissor/receptor se coloca no lugar do outro) podem, como apregoa Boaventura Santos, configurar-se como caminhos para a construção de uma sociedade menos submetida à lógica do mercado (e ao neoliberalismo), e mais à participação da comunidade, em que prevaleçam os princípios de uma ética voltada à participação em termos políticos, com a prática de transformação social emancipatória, que se coloca como meio para a supremacia da solidariedade como saber hegemônico.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. “Lutas sociais e questões nacionais na América Latina”. Lutas Sociais. Nº 17/18, p. 64-77. 2º semestre de 2006 e 1º semestre 2007.
BAUMAN, Zygmut. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
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www.secondlife.com
www.telesurtv.net
www.wikipedia.com
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Notas
- O autor parte da teoria do caos, ou seja, a ordem coexiste com ele, de forma não linear. “Como os indivíduos e as sociedades não podem produzir conseqüências senão através de causas e como estas, segundo as teorias do caos, não ocorrem na mesma escala dos seus efeitos, não é possível partir do pressuposto de que o controlo das causas acarreta consigo o controlo das conseqüências. Pelo contrário, a falta de controlo sobre as conseqüências significa que as acções empreendidas como causa têm, não apenas as conseqüências intencionais (lineares) da acção, mas uma multiplicidade imprevisível (potencialmente infinita) de conseqüências. O controlo das causa, sendo absoluto, é absolutamente precário” (p. 79-80). Ao se aceitar o caos, supera-se a idéia de que tudo tem controle, estimulando o “conhecimento prudente”.
- O Youtube é uma plataforma que possibilita inclusão de vídeos para que sejam assistidos sob demanda via web: www.youtube.com.
- O Second Life é um jogo virtual que alia entretenimento com negócios. O internauta cria um avatar para viver uma segunda vida. Empresas compram espaço virtual para terem suas marcas impactadas na vida virtual das pessoas. No primeiro semestre de 2007, contava com mais de 5,5 milhões de usuários. www.secondlife.com e www.secondlifebrasil.com.br
- Segundo notícia do Ibope (publicada em 28/09/2007), no Brasil, o total de pessoas com acesso residencial à internet atingiu em agosto de 2007 seu maior patamar, totalizando 30,1 milhões de pessoas. O total de pessoas com mais de 16 anos com acesso à internet em qualquer ambiente (casa, trabalho, escolas, universidades e outros locais) foi de 36,9 milhões. Dados disponíveis em: www.ibope.com.br/noticias. Esse número equivale a aproximadamente 20% do total da população estimada (188 milhões).
Trabalho apresentado no II Seminário Comunicação na Sociedade do Espetáculo, realizado nos dias 5 e 6 de outubro de 2007, na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo.
Contato: [email protected]
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