Fórum
Indústria Cultural, Vanguardas Artísticas e Bienal de Artes
Jan 20, 2009
Adriana Soares de Castro discute o tema da perspectiva de autores como Bourdieu, Bauman, Adorno e Teixeira Coelho.
Ideologia e dominação simbólica
Para falarmos do discurso de Adorno e Horkheimer acerca da Indústria Cultural é interessante abordarmos antes, e rapidamente, dominação e classes sociais. Isso porque o caráter de similaridade que a Indústria Cultural confere aos produtos que consumimos, discussão na qual entraremos mais adiante, tem ligação direta com a questão de autonomia de nossas idéias, discutida por Marx tendo como objeto a ideologia, e a discussão sobre a naturalização do gosto, por Bourdieu.
Para Marx, a ideologia é uma representação ilusória sobre a realidade social que cria universais abstratos que não correspondem à realidade das coisas, há uma elaboração de valores e princípios expostos como válidos para todos, que faz com que todos os seres humanos a priori se percebam iguais. A naturalização destes ideais dominantes se dá pela ilusão de que as idéias são autônomas, quando em sua essência são ideais impostos por um discurso ideológico que permeia a nossa existência.
Ainda sobre a questão da naturalização das nossas idéias, encontraremos em Bourdieu a discussão a respeito do gosto e a análise dos mecanismos de dominação com ênfase na diferenciação pelo conhecimento e apreciação das Artes, como símbolo da Cultura. Dentre os fatores que determinam a posição de um sujeito no espaço social estão os capitais, definidos por Bourdieu como sendo: econômico, cultural, social e simbólico.
Embora a princípio nos pareça transparente a relação que a Indústria Cultural possa ter com a determinação do capital cultural de um sujeito, um segundo olhar nos revela que a força do consumo cultural não está apenas ligada ao próprio campo da cultura, mas circula entre os campos que envolvem os outros capitais e compõem uma classificação complexa do sujeito.
Indústria Cultural
O ar de semelhança que a cultura contemporânea confere a tudo que vimos, ouvimos, lemos e de alguma maneira consumimos direta ou indiretamente, está ligado intrinsecamente ao caráter de mercadoria conferido à cultura e que discutiremos à luz das idéias de Adorno e Horkheimer, no célebre texto “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas“, presente em Dialética do Esclarecimento (1985).
A transformação das artes em negócios confere às obras o status de produto, há uma lógica de mercado permanente na produção da cultura, que de genuína passa a ser direcionada a um público específico, passa a ser coisificada, como um objeto produzido pelo capitalismo para gerar uma satisfação momentânea em troca de uma porção de dinheiro. Sob o argumento de levar cultura a todos, os grandes industriais padronizam sua produção, segmentam suas entregas e ainda sob este mesmo aspecto justificam a baixa qualidade da produção, pois para tal disseminação os produtos devem ser padronizados e para tanto as necessidades dos consumidores também – aqui entra o caráter de retroalimentação da produção cultural contemporânea: cria-se uma necessidade e a partir dela um produto que a atenda, sem satisfazer, para que o consumidor volte a consumir por necessidade aquele produto oferecido como forma genuína de manifestação da cultura.
O público é parte do sistema, está integrado e também por isso se percebe no papel de beneficiário e por muitas vezes também se acredita produtor, quando na realidade o público é manipulado pelos industriais que se escondem atrás de seus produtos. Nas palavras de Adorno e Horkheimer “Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada um deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com o seu nível” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 101).
Neste ponto nos aproximamos do pensamento de Bourdieu sobre a naturalização do gosto, sobre a nossa idéia de autonomia diante de nossas escolhas, que para Adorno e Horkheimer estão sob domínio da chamada Indústria Cultural que estuda e classifica os sujeitos e com a ajuda dos meios de comunicação introduz nos consumidores as idéias possíveis e influenciam nossas preferências, com o objetivo de cumprir o princípio humano de diferenciação.
Em defesa do gosto como uma preferência construída, Bourdieu apresenta o conceito de habitus, que nesta discussão acerca da indústria cultural coloca em jogo mais um jogador. O habitus é socialmente construído e tem relação com o ambiente em que o sujeito se formou, tecendo um sistema de disposições que gera todas as práticas do sujeito. Com a indústria cultural permeando a formação do sujeito e, já de acordo com o seu ambiente, induzindo seus gostos e suas características diferenciadoras, há muito pouco, para não radicalizar no sentido do nada, de escolhas genuinamente autônomas do sujeito em seu consumo cultural.
A indústria cultural se estabelece em um estado tão permanente de presença no ambiente dos sujeitos que mesmo os consumidores que não acreditam estar consumindo um produto cultural com certeza o estão. Neste sentido, o estabelecimento de vanguardas artísticas e até mesmo a busca por uma arte mais pura acabam por levar os consumidores a andar em círculos e a se deparar com o domínio do capital financeiro e da busca por um perfil de consumidor já classificado, filtrado pela formação de seu habitus, homogeneizado e mantido por uma endogamia também naturalizada.
Na rotina travestida de natureza, a linguagem faz a ligação e estabelece o reconhecimento do sujeito em suas escolhas e também dos produtores de bens culturais que em sua pretensão esperam ser reconhecidos pelo público.
A compulsão do idioma tecnicamente condicionado, que os astros e os diretores têm de produzir como algo de natural para que o povo possa transformá-lo em seu idioma, tem a ver com nuanças tão finas que elas quase alcançam a sutileza dos meios de uma obra de vanguarda, graças à qual esta, ao contrário daquelas, serve à verdade (Adorno & Horkheimer, 1985, p.106).
Com relação à vanguarda artística, Adorno e Horkheimer se arriscaram a falar em verdade, a falar da vanguarda como arte verdadeira. No entanto, na dinâmica apresentada por eles mesmos, e sem muito uso de uma capacidade quase vidente de previsão, sabemos que vanguardas são voláteis. E esta característica se dá exatamente pelo domínio da indústria cultural nos meios de produção artística em que qualquer forma ou conteúdo inovador é absorvido pela indústria, classificado de acordo com o público consumidor, distribuído onde este público está e pasteurizado em sua linguagem para se tornar palatável e acessível.
O controle da indústria cultural sobre os seus consumidores se dá pela diversão “a arte ‘leve’ como tal, a diversão, não é uma forma decadente. Quem lastima como traição do ideal de expressão pura está alimentando ilusões sobre a sociedade” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 111). Esta forma de expressão pura, desenvolvida por Adorno e Horkheimer, poderia ser entendida como a vanguarda discutida anteriormente e que rapidamente é engolida pela indústria.
Indústria Cultural e Bienal de Artes
O que é a Bienal de Artes se não a institucionalização da cultura? E o que é a institucionalização da cultura se não o estabelecimento de uma série de ligações em prol de uma indústria? E que indústria será essa se não a cultural?
Segundo Adorno e Horkheimer “falar de cultura sempre foi contrário à cultura. O denominador comum ‘cultura’ já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 108). Essa institucionalização da cultura trouxe a arte de vanguarda para dentro de uma administração e para dentro de um mercado das artes que, embora já existisse antes, agora (década de 50) tomava um caráter oficial perante os Estados e apresentava claramente o objetivo de intercâmbio entre os países no que diz respeito à aquisição de obras de artes e formação de acervos.
A Fundação Bienal de São Paulo declara em material de divulgação sobre sua história que “(com o fim da Segunda Grande Guerra) o intercâmbio internacional também era favorável, já que os países europeus, em reconstrução, colocavam sua produção artística no mercado a preços baixos. Com esse ambiente propício, só faltava quem investisse recursos para dar continuidade ao processo de institucionalização da cultura” [1]. O caráter mercadológico das Bienais nunca foi um segredo, no entanto a característica de apresentar vanguardas artísticas aparecia como uma pretensão. Mas como pensar uma vanguarda artística, no sentido de uma arte pura desprovida das amarras da indústria cultural se ela mesma está sob julgamento do mercado, depende de patrocinadores e segue tendências que embora possam ter sido naturalizadas pela história faziam parte dos interesses de um grupo restrito de ‘industriais’ da época?
Claro que a princípio poderíamos colocar em discussão o conceito de vanguarda artística. Para Zygmunt Bauman, não é possível que na contemporaneidade se tenha uma vanguarda artística, isso pelo simples motivo de que a vanguarda necessariamente se caracteriza por estar de alguma maneira à frente numa tendência. Atualmente a arte se encontra num estado característico da pós-modernidade que é o de liquefação, não há uma frente de produção à qual possa haver uma vanguarda em oposição. Para se ter uma vanguarda é preciso estar à frente de algo, se não existe esse estado concreto das coisas, não há como se estar à frente (Bauman, 1998).
Já para o pensador e artista brasileiro Ferreira Gullar há uma questão anterior que pondera o conceito de vanguarda de acordo com o país em foco, como é uma vanguarda num país subdesenvolvido? É como na Europa? Para Gullar, a vanguarda não é apenas o desenvolvimento de um estilo que radicalize as pesquisas formais, e afirma que “a verdadeira vanguarda artística, num país subdesenvolvido, é aquela que, buscando o novo, busca a libertação do homem, a partir de sua situação concreta, internacional e nacional” (Gullar, 1984, p. 24).
De qualquer maneira vale pensar a Bienal Internacional de Artes dentro destas mudanças históricas, de modernidade para pós-modernidade, e do contexto brasileiro das artes. O que a princípio incorporava o Brasil ao círculo mundial das artes e fazia além de um papel de aquisições também um papel de trazer as novidades de outros países, principalmente os europeus, fomentando a criatividade dos artistas nacionais, hoje perdeu sua característica primordial de unir em um único espaço todas as tendências possíveis e expor ao público e também aos artistas o conteúdo e a forma pensados em diversas partes do mundo. A Bienal chega ao século XXI diante de um novo cenário nacional, o efeito da globalização e as tendências de intercâmbio que se dão devido à facilidades encontradas hoje como nunca antes na história, favorecem que o círculo das Artes tenha momentos de auge fora das Bienais. A arte contemporânea está nas galerias, nos centros culturais, nos museus, o potencial de fomentar a criatividade e de trazer tendências internacionais se pulverizou por outros lugares e acontece a qualquer tempo, deixando assim uma importância relativa para a Bienal Internacional de Artes.
Afora as questões objetivas da Bienal, a discussão sobre o caráter artístico das exposições vem sendo uma preocupação de críticos e pensadores da arte. Adorno e Horkheimer já vociferavam sobre a proximidade entre entretenimento e arte: “livre de toda restrição, o entretenimento não seria a mera antítese da arte, mas o extremo que a toca” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 117).
Para Teixeira Coelho, crítico de arte, há hoje na Bienal, tendo em vista a 28a Bienal Internacional de São Paulo (2008), uma preocupação maior com a diversão do que com a reflexão – aspecto original da arte. O movimento de migração da reflexão para a diversão poderia ser visto como um movimento de democratização da arte, mas ao mesmo tempo minimiza seu caráter contemplativo e de desinteresse.
A relação das Bienais com a indústria cultural é clara, sobre o consumo da arte pelas massas, Teixeira Coelho afirma: “Quando, no século 19 (Veneza abriu em 1895), um público numeroso começa a ver pintura (arte), surge o primeiro sintoma da crise da pintura (da arte), provocada não só pela chegada da fotografia, mas também pela pretensão (ou nova obsessão) da própria arte de dirigir-se às massas que surgiam” – estabelecendo uma ligação direta da transformação da arte com a idéia de acessibilidade às massas (Coelho, 2008, p. 44).
Nesta “obsessão” por se tornar acessível às massas a arte acaba por abdicar de seu papel contemplativo para exercer agora um papel de distração, de diversão e entretenimento, mudança que se alinha aos ideais da indústria cultural.
Teixeira Coelho coloca em discussão a verdadeira necessidade de se ter uma Bienal, levando em conta que a arte está nas galerias e nos museus, e que um encontro bienal deste porte não se faz valer nem pelo seu conteúdo e nem pela sua forma, já que não traz necessariamente novidades do meio artístico e tampouco prima pela contemplação. Radicalizando, cita Titãs “os Titãs têm razão: ‘a gente não quer só comida/a gente quer comida, diversão e arte’. Portanto, diversão tem vez. Mas a gente também quer arte. ‘A gente não quer só dinheiro/a gente quer inteiro e não pela metade’. Onde está a outra metade, a metade arte?” (p. 45).
Mas o que fazer com a Bienal? Basta dar a ela outra periodicidade, de modo que possa trazer algo de genuíno e contemplativo? Ou o futuro está nos museus, que com menor compromisso com a indústria se limitam a trazer as obras a público e deixar que a fruição aconteça paulatinamente?
Para Teixeira Coelho é preciso perder o medo do pequeno público e apresentar a arte para fruição, deixando abertas as portas aos que se interessarem por isso. E embora este possa parecer um pensamento elitista ou burguês, faz sentido se pensarmos que a arte tem que ser para o povo se o povo quiser, se interessar e se identificar com ela. Existem outras manifestações culturais, que não a arte apresentada pelos museus e galerias, que enchem os olhos da massa e isso não é por terem menor acesso aos museus, mas por terem maior interesse por outras manifestações.
Vale encerrar a discussão com a clareza de Ferreira Gullar:
Já foi infinitamente maior, no passado, a integração entre a pintura e a massa. Não será porque, na Idade Média, o povo tinha melhor formação estética que hoje e sim porque a pintura, naquela época, exprimia uma realidade cultural, religiosa, de que a massa participava. E é precisamente com a fragmentação da sociedade feudal, o surgimento da burguesia e a divisão da sociedade em classes que a pintura vai perdendo sua capacidade de comunicação para o conjunto da sociedade. É fato que a pintura também se transformou, mas essa transformação não se fez no sentido da ampliação de sua temática em face da sociedade de massa que nascia e sim, no sentido inverso, do isolamento subjetivista (Gullar, 1984, p. 85).
A pintura, aqui como sinônimo das Artes em geral, foi mais um aspecto diferenciador entre classes sociais, por outro lado as classes mais distantes da elite também criaram suas manifestações e a imposição de uma à outra só traz conflito e desagregação de idéias e valores dos grupos envolvidos. Queremos mesmo ser todos iguais?
Nota de rodapé
- http://bienalsaopaulo.globo.com/ História
Bibliografia
ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
BOURDIEU, P. “Gostos de classe e estilos de vida”. In: Ortiz, R. (org.) Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo, Ática, 1983.
COELH0, T. “O melhor mesmo é ir ao museu”. In: Revista Bravo, outubro, 2008.
GULLAR, F. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984.
MARX, K. Ideologia alemã. Lisboa, Presença, 1980.
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