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O altar como palco: Tudo é festa na sociedade do espetáculo

Jan 15, 2006

"O papa é pop"

 

I

 

O grande morto está vestido de púrpura, no centro da basílica, cercado por algumas das mais célebres obras de arte, velado por dois milhões de pessoas que fazem silenciosas filas para prestar-lhe as últimas homenagens.

A imagem é vista por dois bilhões de pessoas em todo o planeta.

II

II

 

Imaginemos, como é próprio dos nossos tempos, uma voz em off, descrevendo a cena. O locutor poderia chamar-se Guy Debord.

Ele repete um texto do materialista Feuerbach, o prefácio da segunda edição de A essência do cristianismo:

...sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana.

III

III

 

A imagem da TV foca o corpo em primeiro plano. E se desloca lentamente para o ambiente, a multidão que desfila para ver o morto. Súbito, o écran mostra o morto ainda vivo cercado pela mesma multidão, pregando a verdade da sua fé.

É o milagre da realidade virtual; a ressurreição eletrônica, própria do mundo do espetáculo.

IV

IV

 

Quem se espantaria se o real passasse ao virtual, e o morto se levantasse realmente para pregar? Em off, a voz de Debord prossegue:

... a seus olhos, o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado.

V

V

 

Abstrações religiosas à parte, e com o devido respeito constitucional ao chefe de Estado da Santa Sé, a agonia, morte, velório e sepultamento, do corpo do ator Karol Wojtyla (nome de batismo do sumo pontífice) devem (e merecem) ser analisada à ótica dos conceitos de Jean Baudrillard , expostos na obra A publicidade, os objetos e a sociedade de consumo.

Nada se aproxima tanto da idéia do sagrado e do profano da sociedade do espetáculo, da tela virtual do permanente mercado de consumo (de propostas e objetos), do que a longa trajetória do carismático papa João Paulo II. Soube colocar-se sempre no centro das atenções e acabou sendo aceito, sem contestações, como o maior líder do período de transição do século XX para o XXI.

Usou de todos os meios de comunicação para propagar a mensagem da fé católica. E, principalmente, levar como bagagem, nas muitas viagens pelo mundo, a sua visão particular da virtual Igreja de Cristo.

PASTOR MULTIMÍDIA

VI

VI

 

Teve uma visão perfeita como pastor multimídia, que soube tirar vantagens de todas as formas de comunicação subliminar, aproveitando a fé dos receptores das suas mensagens com a autoridade moral de quem se apresenta como procurador de Deus.

Mas, em certo sentido, cunhou outra visão considerada por muitos críticos contraditória, como governante do pequeno (na extensão territorial) e grande (com tutela sobre quase um bilhão de católicos) do Estado da Santa Sé, cuja capital é Vaticano.

Como condutor social e governante religioso de um país cuja força é apenas moral, vestiu-se do espírito democrático e liberal ao conduzir campanhas contra regimes políticos (contribuiu para a derrocada do comunismo). Condenou atos de guerra, como a invasão do Iraque, e também tiranias e regimes, entre eles os excessos do capitalismo selvagem -, à esquerda e à direita. Postou-se ao lado de árabes, judeus, palestinos e negros.

Visitou 128 países em 26 anos de pontificado, encontrando-se com cerca de mil líderes políticos, de ideologias contraditórias, e religiosos de muitos credos.
 
Domingo de 3 de abril de 2005: canais de televisão do mundo ocidental (e também do Japão e da Arábia Saudita) exibem cenas da vida do grande morto, do “papa que era pop”. Tornam real no mundo virtual uma espécie de profecia daquele que conhecia bem a sociedade do espetáculo: “Eu nunca morrerei; nunca serei esquecido”, consta que teria dito a pessoas mais próximas (Folha de S. Paulo, 4 de abril de 2005).

VII

VII

 

A declaração, se foi feita, segue à risca o modelo doutrinário de quem o papa era procurador: “Eu sou a verdade e a vida, quem crê em mim, jamais morrerá; e quem estiver morto, ressuscitará”, disse Jesus Cristo.

VIII

VIII

 

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”, ensina Debord.

IX

IX

 

Se como líder religioso e pastor do mundo João Paulo II, na visão da maioria, atingiu a marca da perfeição e a beira da santidade doutrinária; como chefe do seu próprio governo deixou a desejar. Monarca constitucional do seu “país” e governo, escondia a face, publicamente oculta, de extremamente autoritário com os seguidores da Teologia da Libertação. Mas, foi leniente com a “Opus Dei”. Politicamente à direita, como natural de um país subjugado pelo estado comunista (e filho de um militar), não deixa de ser curiosa a sua forma de governar que lembrava muito os princípios do comunista Che Guevara: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura jamais”.

O “TRABALHO”

X

X

 

Frase que, com certeza, cunharia a trajetória deste papa, um homem notável, a quem a história da Igreja Católica reservará um lugar inesquecível. Já está sendo comparado a dois dos maiores papas: Leão I e Gregório Magno, ambos santificados.

Não deixa de ser curiosa a comparação. Leão I fez justiça ao nome que levava. Em 452 da era cristã uma horda de bárbaros liderada pelo temível Átila, rei dos hunos, estava às portas de Roma pronta para acabar com o império romano do ocidente. Não havia mais tropas para impedir a destruição. Leão saiu a pé em direção ao acampamento, encontrou-se com Átila e convenceu a desistir da empreitada. Milagre ou não, ele retornou a Roma e em virtude da fraqueza do imperador, iniciou um domínio da igreja que durou 600 anos, até a nossa época. A chave do poder de Leão parece ser o mesmo de João Paulo II, o carisma da palavra.

Gregório I foi papa anos depois de Leão, também numa época em que Roma era ameaçada por bárbaros. Homem piedoso, faz lembrar mais João Paulo I que o II. Foi eleito papa e fugiu, porque não se achava preparado para o cargo.
Contam as lendas (que não deixam de ser formadoras de mitos) , "que uma luz milagrosa" seguia Gregório e indicava o lugar onde quer que se ele escondesse. Foi um papa notável e lúcido. Deixou uma curiosa observação sobre a relação do poder político com os bispos da Igreja: “Os bispos são os olhos do povo. Se os que governam o povo não têm luz, os que lhes estão submetidos só podem cair em confusão e erro”.

Deve ter nascido daí a famosa recomendação aos insatisfeitos e injustiçados: “vá se queixar ao bispo”.

XI

XI

 

Este balanço preliminar da figura de João Paulo II como administrador serve de introdução para explicar os contrastes de comportamento de Karol Wojtyla no cenário do século XX, à luz de alguns “princípios” de Jean Baudrillard. Tornam fascinantes as formas de analisar o “trabalho” do grande papa. E convidam o observador a abstrair a massificação dos meios de comunicação da indústria cultural (referida por Theodor Adorno e Max Horkheimer) para melhor analisar sob um ponto de vista independente o “esquema desse trabalho”. Análise que se torna difícil diante da cativante figura de um ser humano idoso, um espírito rebelde lutando contra as mazelas do próprio corpo, como um motor de Ferrari num pequeno fusca.

XII

XII

 

Nas colocações feitas à revista Época (em 7/6/2003) sobre a sociedade atual, Baudrillard observa:

O conceito de pós-modernidade não passa de uma forma irresponsável de abordagem pseudocientífica dos fenômenos [...] Sou um dissidente da verdade. Não creio na idéia de discurso de verdade, de uma realidade única e inquestionável. Desenvolvo uma teoria irônica, que tem por fim formular hipóteses. Estas podem ajudar a desenvolver aspectos impensáveis. Procuro refletir por caminhos oblíquos. Lanço mão de fragmentos, não de textos unificados por uma lógica rigorosa. Nesse raciocínio, o paradoxo é mais importante que o discurso linear. Para simplificar, examino a vida que acontece no momento, como um fotógrafo. Aliás, sou um fotógrafo.

“Vestidos” dessa linha de raciocínio vamos buscar no passado do papa os elementos da linha psicológica que Carlos José Wojtyla usou para criar João Paulo II.

“A IGREJA SOU EU”

XIII

XIII

 

Fragmentos da vida do operário Karol Wojtyla contribuiriam para explicar o intelectual e o ator que vestiu o papel de líder religioso e social de João Paulo II, a partir do momento em que, segundo os teólogos, se manifestou a vontade do Espírito Santo, que viu nele o meio de propagar a verdade da Fé.

"A Igreja sou eu", avisará à guisa de Luiz XIV, durante todo o seu pontificado, o papa que acaba de morrer. E repetirá o recado sempre que alguém sopre a tese da renúncia de um papa muito doente.

Uma análise do jornalista Terry Eagleton (publicada na Folha de S. Paulo, caderno Mais, em 3 de abril de 2005), a partir de uma biografia de João Paulo II (escrita por John Cornwel), mostra com perfeição e sem injustiça, as duas faces de Wojtyla.

Se João XXIII revolucionou a Igreja Católica, lançando as bases da Teologia da Libertação colocada em prática pelo liberal Paulo VI, com o desaparecimento deste, os cardeais conservadores (sem saber como proceder para restaurar a velha igreja do Deus Pai Todo Poderoso da Capela Sistina) elegeram às pressas o típico “papa de transição”: Albino Luciani. Traduzido do latim e italiano, seu nome já seria um recado do Espírito Santo. Significa “as luzes brancas”.

XIV

XIV

 

Momento histórico, final da década de 70. Fechada em si mesmo, cheia de uma simbologia ligada a tradições medievais, vendendo promessas bíblicas e escondendo a vergonha da riqueza das obras de arte e do ouro da Capela Sistina e dos altares da basílica de São Paulo, o que resta à Igreja?

Que respostas poderia dar à pobreza da maior parte da humanidade católica, ao avanço do comunismo (e à versão ateísta de que a religião é uma droga) à falta de justificativas aos seus fiéis? Qual a saída?

O ATOR

XV

XV

 

Eis que surge no balcão sob a fumaça branca uma nova proposta: João Paulo I, o “papinha”, dono de um carisma instantâneo, traduzido num simples gesto: um imenso e “luciano”, luminoso, sorriso.

Mas, o papa do sorriso não sabia o que fazer na sociedade do espetáculo. Era um ator de uma única fala no cenário de um panfleto cheio de contradições: só tinha o sorriso. Carlos Heitor Cony, ex-seminarista, estava poucos meses antes da morte de Paulo VI em Veneza. Chovia. Estava perto da catedral de São Marcos. Resolveu entrar. Viu um padre ao fundo que conversava animadamente com sete pessoas. Aproximou-se e percebeu que não era um simples padre, mas o cardeal de Veneza. “Lembrei-me que era jornalista e lhe perguntei o que achava de um dia ser papa”. A resposta foi de uma humildade desconcertante: “Isso não é para mim, meu filho. Eu sou um pobre padre que gosta de batizar crianças”. Tratava-se do mesmo Albino, de luciano sorriso, que entrou cardeal no conclave e sairia papa.

Terry Eagleton revela, com certa ironia cruel, que João Paulo I jogou certa vez os papéis da burocracia vaticana pela janela. E depois foi visto chorando, pelo secretário particular, porque fora repreendido pelo cardeal que lhe servia de secretário do Estado.

Correm historias mal explicadas de que ele teria deixado escapar que por sua vontade venderia as obras de arte do Vaticano (embora lhe tivessem objetado que inflacionaria o mercado) para distribuir a injusta riqueza com os pobres.

XVI

XVI

 

Ao 33° dia, apagou-se o sorrio de Luciano: “Ele jamais foi um homem que se tenha sentido confortável no mundo”, assinala Eagleton. "Não suportaria a realidade virtual da Igreja. O destino, ou mais provavelmente uma cabala de conspiradores do vaticano, o matou".

XVII

XVII

 

Debord:

As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo [...] O espetáculo consiste na multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também nos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que fala à vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias–tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. [...] Os meios de comunicação de massa são apenas a manifestação superficial mais esmagadora da sociedade do espetáculo, que faz do indivíduo um ser infeliz, anônimo e solitário em maio à massa dos consumidores. [...] O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.

XVIII

XVIII

 

O breve pontificado de Luciani deu tempo ao colégio cardinalício para procurar uma solução que invertesse o “quadro de risco”, na visão dos mais conservadores, representado pelo crescimento da Teologia da Libertação.


NÃO É ITALIANO

XIX

XIX

 

Outubro, 16, 1978: montado o tão conhecido cenário da sacada do quarto do papa, e antecedido pela fumaça branca do teto da Capela Sistina, surge o camerlengo: “Habemus papa. Karol Wojtyla”.

Reação na praça: “É um preto africano? Com certeza não é italiano!”
 

XXX

XXX

 

E surge a escolha do Espírito Santo: um de ator polonês. Corpo de atleta (de jogador de rúgbi, conforme a visão de Carlos Heitor Cony), “face de Hollywood pronto a vestir a roupa de caubói, ao melhor estilo de John Wayne ou Ronald Reagan”, observa Eagleton.

Wojtyla dará início naquele instante mágico à incorporação dos princípios da publicidade, da globalização, da sociedade do espetáculo.

Se for a vontade do Espírito Santo que a Igreja volte às manifestações primitivas da imposição de línguas de fogo sobre a testa dos apóstolos para que falem línguas e propaguem a mensagem da fé, o milagre vai se operar.

As catacumbas da propaganda, os subterrâneos da sociedade do espetáculo já estavam em formação no seio da Igreja, a partir da facção da “Renovação Carismática”. Melhor: a escolha iria recair sobre um integrante dessa facção, na esquecida Polônia.

XXXI

XXXI

 

Quem conhece um pouco da “Renovação Carismática” entenderá a profundidade da escolha: seus membros cantam e dançam durante as missas. A interação com o padre (alguns padres dançam no altar) tem certa semelhança com os cultos das igrejas protestantes afro-norte-americanas, e seus corais gospel. É um espetáculo!

Com a escolha que se seguirá dos cardeais guiados pelo Espírito Santo (assim crê a doutrina) a Igreja vai renascer com a força dos primeiros apóstolos. Usará a dos imensos e potentes emissores da Rádio Vaticana (com TV) e o jornal Observatore Romano.

Competindo de barco no dia em que recebeu a notícia de que era bispo

XXXII

XXXII

 

Com Wojtyla começará a era da igreja eletrônica e multimídia, o modelo carismático do papa atleta praticando esportes e vendendo saúde. Os meios de comunicação propagam : foi goleiro de futebol na juventude, descia as corredeiras do rio em um caiaque quando lhe comunicaram que virara bispo. Até esquia !!!

Inicia-se, acima de tudo, a era do papa-ator, do homem de teatro e da propaganda, que escreve, canta e atua. E que vai aproveitar uma máxima de Adorno e Horkheimer no mundo da indústria cultural:

Toda a voz de tenor acaba por soar como um disco de Caruso, e os rostos das moças texanas já se assemelham em sua espontaneidade natural aos modelos que fizeram seguindo os padrões de Hollywood.

A Igreja Católica vai tornar-se o rosto desse papa vigoroso e seus pastores passam a ser vistos como cópia deste.

COCA-COLA

XXXIII

XXXIII

 

É natural, mostraria o tempo, que com alguns fatores negativos. Debord ensina:

O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens.

XXXIV

XXXIV

 

Wojtyla iniciará ali no balcão da janela do balcão do Vaticano, com sutileza, a aplicação dos princípios da propaganda na Igreja, inserindo-a na sociedade do espetáculo descrita por Debord. Aplica à risca essas regras: Não era sedutor o sorriso de João Paulo I?

Então, eis aqui o papa João Paulo II!

XXXV

XXXV

 

Cansados da velha imagem de papas italianos, almejando um produto novo no mercado religioso, os católicos se deparam com um papa polonês.

Oferecido pelo Espírito Santo no voto de cardeais conservadores, tão conservador quanto eles, seguidor de Maria Santíssima (um homem que perdeu a mãe aos 14 anos), Wojtyla é originário de um país comunista com a igreja condenada ao silencio, um ex-operário sob o jugo nazista. O oposto do que pregava a Teologia da Libertação.

Eagleton:

Um papa dessa região não demoraria a por fim ao pluralismo, ao relativismo moral, às missas relaxadas, acompanhadas por hambúrgueres e Coca-Cola, e à postura da Igreja Católica como companheira de viagem da extrema esquerda.

XXXVI

XXXVI

 

João Paulo II se posiciona contra o diálogo com o ateísmo da esquerda. Mas, encontra um quadro político interno, na sua Igreja, cada vez mais complicado, que vive a contradição de dogmas medievais: mandava viver pensando sempre na morte. A basílica é ao mesmo tempo o centro das cerimônias religiosas em que se celebra a vida e um mausoléu onde se cultua a morte. Nos altares laterais estão os corpos dos santos, e ali no subterrâneo, na cripta por onde se desce por uma escadinha a partir da imagem de São Pedro com o pé desgastado pelas mãos dos peregrinos, estão as catacumbas, onde ficam os mortos.

Se continuava a ter dúvidas sobre o valor de conversas com outras crenças, em nome da necessidade do papa ser o vigário da paz, Wojtyla começaria a mudar.

XXXVII

XXXVII

 

Jean Baudrillard explica teórica e genericamente os caminhos de saída que a sociedade encontrou para vencer contradições desse porte:

Os signos evoluíram , tomaram conta do mundo e hoje o dominam. Os sistemas de signos operam no lugar dos objetos e progridem exponencialmente em representações cada vez mais complexas. O objeto é o discurso, que promove intercâmbios virtuais incontroláveis, para além do objeto. [...] Atualmente, cada signo está se transformando em um objeto em si mesmo e materializa o fetiche, virou valor de uso e troca a um só tempo. Os signos estão criando novas estruturas diferenciadas que ultrapassam qualquer conhecimento atual. Ainda não sabemos onde isso vai dar. (Revista Época, 7/6/2003).


MONÓLOGOS

XXXVIII

XXXVIII

 

 Wojtyla é, antes de padre, um ator e um autor teatral de monólogos (“A joalheria”). Peça escrita nos anos 50, apresenta curiosamente “um ator que formula questões diante de personagens que não têm direitos de resposta, a obra identifica a personalidade do autor” (Eaglleton).

O monólogo vai imperar no início do seu governo.

Um governo que, na visão da Teologia da Libertação, impunha na época a condução à assembléia dos bispos por toda a terra, numa espécie de concílio ambulante.

Wojtyla vai aos poucos recuperando os poderes, isolando os bispos, recusando o papel de “rainha diante do parlamento”.

Extremamente autoritário (imagem cuidadosamente preservada do público) recupera os poderes reais de um monarca.

Repreende os teólogo do Concílio Vaticano II (Edward Schillebeeclek e Hans Kung) ainda em 1978.

XXXIX

XXXIX

 

“O pontífice foi duro”, relembra hoje, frente ao grande morto (a quem perdoa e coloca no rol de pré-santo) d. Pedro Casaldáliga, 77 anos, um dos teólogos hispano-brasileiro punidos por sua atuação progressista como bispo de São Félix do Araguaia, Brasil. Foi chamado a Roma, em 1983, para explicar à Santa (inquisição) Doutrina da Fé o que pretendia com a defesa dos direitos de manifestação das comunidades eclesiais de base (uma espécie de petistas católicos, conforme os mais severos críticos).

Segundo declarações à Folha de S. Paulo (4 de abril de 2005), depois de longo interrogatório feito por cardeais, d. Pedro foi recebido pelo papa: “Ele me abraçou e disse em português [...] é para que você veja que não sou nenhuma fera”.

Ou seja: punição, e compensação. Pura teoria da propaganda: morde e assopra. A intimidação, o poder de punição, a obrigação de fazer. E, também, a tentação, a recompensa.

Eram estes os tempos iniciais dos anos 80.

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

XL

XL

 

Promovido o controle interno, com “mão militar”, Woytila inicia o externo. Dono da cruz, que os especialistas em Marketing definem como o melhor signo, “a melhor marca da história da humanidade”, João Paulo II inicia, ainda na década de 80, a mais bem sucedida campanha publicitária do século XX.

Torna-se o senhor da cena, o ator central da sociedade do espetáculo religioso: leva a cruz a todo o mundo.

“Foi o primeiro papa a dar uma entrevista coletiva à imprensa. Durante pelo menos 60 viagens que fiz no mesmo avião ao redor do mundo, pude não apenas fazer perguntas, mas conversar com ele”, conta o jornalista Juan Arias, correspondente do El País no Brasil (Folha de S. Paulo, 5 de abril de 2005).

E usa a cruz como instrumento político; a propaganda como aliada. É famosa a história do encontro da Lech Walesa, presidente da Polônia, líder sindical do “Solidariedade” (um movimento que contou com o apoio do Papa, para derrubar o comunismo) com Karol Wojtyla, no Vaticano. Walesa se ajoelha e tenta beijar os pés de Wojtyla, que o segura. Mas, o papa percebe num átimo que o fotógrafo da Reuteurs perdeu a cena. Cochicha ao ouvido de Walesa, e este repete a cena. A foto irá percorrer o mundo.

XLI

XLI

 

Baudrillard ensina que:

a publicidade é produto da sociedade capitalista e tem como função objetiva divulgar as características do produto e promover-lhe a venda. No sentido cultural, está incorporada à informação, à persuasão e à dissolução pela saturação da própria mensagem publicitária, que é autofágica.

Não se sabe (os meios de comunicação não exploraram melhor essa hipótese) se o Vaticano tem especialistas em marketing a seu serviço. Mas, por tradição secular, a missa e principalmente a missa cantada, têm roteiros cênicos escritos há séculos. A missa é uma encenação repetida sempre da mesma forma porque encerra mistérios esotéricos, sendo o principal deles a Eucaristia.

A missa, por si só, é um espetáculo, que incorpora polifonia, remete a ritos do inconsciente coletivo e hoje é principalmente participativa, interativa, em que os fiéis não são mais atores, mas co-celebrantes.

XLII

XLII

 

Debord:

... o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo decorre dessa escolha. Forma e conteúdo do espetáculo são, de modo idêntica a justificativa total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo também é a presença permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna.

Um dos primeiros atos de Wojtyla é mandar a TV do Vaticano transmitir a missa dominical da Basílica de São Pedro. Todo o cenário místico do altar esculpido por Bernini, com suas colunatas salomônicas lembrando as aspirais sonhadas por Jacó, no tempo de Jerusalém, é levado aos lares de milhares de católicos, pela genialidade propagandística do papa.

Ele transforma o altar em palco.

O PALCO É O ALTAR

XLIII

XLIII

 

No cenário mais bem trabalhado por artistas ( Michelangelo, Rafael, Bernini) que fazem parte do acervo da arte do patrimônio humano (curiosamente mandados pintar por papas que o antecederam exatamente para propagar a fé para uma humanidade iletrada), revive-se o sacrifício da santa missa para todo o planeta plugado.
 

XLIV

 

Debord:

O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. Suas diversidades e contrastes são as aparências dessa aparência organizada socialmente, que deve ser reconhecida em sua verdade geral.


XLV

XLV

 

Não falta quem tivesse visão semelhante: "João Paulo II pôs a mais moderna tecnologia a serviço de um papado digno da Idade Média", assinala o escritor paquistanês Tariq Ali (Folha de S. Paulo, 4 de abril de 2005).

Ele considera que Wojtyla foi um papa contra-revolucionário, responsável pelo fato de a Igreja ter dado muitos passos para trás e de ter se mantido praticamente ausente de questões importantes, como a luta pelos direitos humanos. "Abandonou religiosos que, no Terceiro Mundo, lutavam pelos direitos humanos".

XLVI

XLVI

 

A imagem mostra uma coisa, a realidade é outra, de simulação perfeita no mundo virtual do simulacro.

Enquanto o mundo assiste pela telinha Wojtyla beijando crianças, João Paulo II "repreende freiras por usarem calças compridas e não hábitos".

XLVII

XLVII

 

Debord:

O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que por princípio ele exige é a da aceitação passiva que, de fato, ele já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência.

A IGREJA É UNA

XLVIII

XLVIII

 

Wojtyla esquematiza o plano destinado a envolver todo o mundo católico em torno da “Eclésia” (assembléia), em que não há atores e platéia, somente todos interagindo, fazendo parte do espetáculo (hoje na missa se canta junto com o padre; antes se respondia em latim ao que ele invocava). Todos cantando, e se cumprimentando, se perdoam coletivamente dos “pecados” que de individuais se tornam coletivos.

“A Igreja é uma”, afirma o papa. Seu alvo central é a divindade como um todo: o corpo de Jesus dentro de cada fiel, como o vaso puro que é o templo de Deus vivo.

E, acima de tudo, assinala aos bons com a recompensa; e aos maus com a punição, com o escape do arrependimento. Explora todas as formas de clássicas de manipulação.

Sedução, lisonja que leva ao querer-fazer; provocação, desafio, que recompensará quem quiser fazer. Usa TVs, rádios, jornais livros, fitas e cds, Internet. O papa não esquia somente. Também declama, interpreta, canta.

Vende o “reino dos céus”, um produto perfeito de propaganda, porque é de entrega incerta mas eficaz: ocorre no tempo futuro (?) no final dos tempos ! Oferece um mundo mais justo e perfeito, o do paraíso.

E, com todo o respeito, sem problemas com o Procon: não se registram reclamações por motivos óbvios. Mortos não se queixam.

XLIX

XLIX

 

Baudrillard explica essa condição, dentro da lógica de Papai Noel, como parte inerente à propaganda:

O que ela (a criança) consome através dessa imagem (Papai Noel), desta ficção, deste álibi – e que acreditará mesmo quando deixar de crer – é o jogo da miraculosa solicitude dos pais e as cautelas que entoam para serem cúmplices da fábula. Os presentes somente sancionam tal compromisso.

Embora uma questão de fé, a promessa da igreja é a vida eterna, e a recompensa para os féis (os que seguem os mandamentos) um lugar no céu. Basta seguir uma regra básica, que parece simples mas o mundo e a sociedade a complicam: apenas perdoar.

L

L

 

Wojtyla soube como ninguém seguir essa regra: seus pedidos de perdão curaram feridas históricas com judeus, negros e muçulmanos. Foi o primeiro líder católico a entrar numa mesquita, a orar no Muro das Lamentações do que resta do Templo de Salomão. Mas, sobretudo cuidou do cenário da sua crença, dos pontos centrais do sacrifício da missa: o altar, palco das suas melhores atuações.

No centro do palco está Jesus. Representando Jesus, como seu vigário e procurador, o papa.

CARISMA

LI

LI

 

O caráter regressivo da presunção coletiva citada por Baudrillard é patente: o sonho oculto da mãe está na Santa Madre Igreja; ou do pai (por vezes com todo o sentido freudiano), claramente no papa.

LII

LII

 

Produto e vendedor se misturam e confundem. O ator Wojtyla (e não se discute aqui se o uso é bom ou mau, por condição de amoralidade) veste o papel de papa condutor da sociedade moderna consciente da importância da propaganda, da forma como nenhum outro cardeal o faria.

Como “pescador” (papel religioso e esotérico atribuído aos papas desde Simão, o Pescador que virou pedra sobre a qual Cristo disse que fundaria a Igreja) João Paulo II foi “pescar” almas. Com perdão dos religiosos, na realidade foi buscar clientes, com todos os males ou bens da influência da publicidade na sociedade. Princípios que incluem desejos e também o caráter coercitivo, em que o consumo concretiza a identidade do indivíduo.

Terry Eagleton faz severas críticas ao conservadorismo religioso de João Paulo II, que prejudicou essa figura de pescador, na medida em que condenou e isolou certos fiéis.

Eagleton não perdoa a intransigência do papa com as mulheres ávidas por participaram como atrizes do papel principal do espetáculo do cenário do altar. Só homens podem rezar missas (ver-se-ía com o tempo, e o horror moral, que homossexuais também).

Eagleton condena a visão tacanha do sexo por parte do papa, a impiedade com os homossexuais, as “minorias malditas” de São Francisco na Califórnia de onde se suspeita ter-se originado a Aids. Considera criminosa a recomendação de que doentes sexuais não usem camisinhas e se abstenham do sexo, que serve apenas para procriar e jamais para satisfazer ou divertir.

Sob seu comando, em nome da necessidade da defesa dos dogmas, a Igreja condena a sociedade de consumo, valoriza o homem como indivíduo, instiga a dúvida (desde que não interfira em questões de fé) em busca da verdade.

LIII

LIII

 

Também sob seu comando, a Igreja usa com maestria o sentido de publicidade e, em certo sentido, aceita a superficialidade imposta por ela. Por vezes, incorpora o simulacro como norma, o mito como regra.

Pensar que a riqueza encerrada pela igreja que tem como norma a caridade é em si um pecado (porque envolve dissimulação no sentido estrito), é pouco.

O que há de mais notável em Wojtyla é que ele leva o papa a beijar o solo das nações onde pisa para levar o apostolado e a marca da cruz. Repete o gesto tantos nas nações ricas como nas pobres. A mensagem é clara: amo esta terra como vocês a amam; mas é a terra de vocês, com seus costumes e usos.

ESPETÁCULO DA FÉ

LIV

LIV

 

Debord:

A sociedade que se baseia na indústria moderna não é fortuita ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculoísta. No espetáculo, imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo.

LV

LV

 

Nas muitas viagens, o papa leva junto com o beijo e a doutrina do perdão toda a sua mensagem de intransigência com as “minorias sexuais”. Daí advém o risco do alerta de Baudrillard: esse quadro poderá, cedo ou tarde, por força da repetição da mensagem publicitária autofágica que se esgota em si mesmo, pela velocidade das novidades, desvalorizar o produto, apesar da conotação forte do signo que a representa.

LVI

LVI

 

O que fará o sucessor de João Paulo II, diante da sombra desse grande papa (como líder religioso e político), diante da sociedade do espetáculo, cansada de simulacros e simulações, ávida por novidades, se ele (o sucessor) continuar beijando solos e criancinhas, enquanto a Igreja enriquece, não distribui essas riquezas, não condena os arroubos maléficos do capitalismo selvagem, isola os homossexuais, considera a camisinha coisa do diabo e coloca a mulher no papel secundário?

Corre, como diria Baudrillard, o risco da dissolução , o que nesse caso pode ser representada pela perda de fiéis para outros credos.

Neste ato teatral da sociedade do espetáculo, o mundo chora, desde domingo, 3 de abril de 2005, a perda de um líder..

O indivíduo, comportadamente colocado no lugar de expectador, ou com direito de expectador-participante,indo à Basílica enfrentar longas filas para tirar retratos junto ao corpo, está ávido por novidades, embora chore.

“Il Papa che há cambiato il mondo” (Corriere Della Sera); “Pope John Paul II dies at 84” (The New York Times); “La fin de Jean-Paulo II” (Le Figaro).

A despeito de todo o esforço da propaganda inata ou cientificamente bem conduzida por João Paulo II, por falta de muitas respostas às dúvidas do mundo católico, a Igreja Católica viu cair em 10% , somente na América Latina (onde estão as maiores nações em número de cristãos), o número de fiéis em relação ao século XX. A observação não é dos adversários da Igreja, mas de um cardeal brasileiro, D. Cláudio Hummes, amigo do falecido papa e, neste momento em que a faz (Folha de São Paulo, 4 de abril de 2005), um dos candidatos mais cotados para suceder a Wojtyla.

Professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp, Roberto Romano assinala, na Folha de S. Paulo de 4 de abril:

O legado de independência, imposto por João Paulo II, será discutido no próximo conclave que escolherá o novo papa, cujo nome poderá sugerir os rumos do Vaticano (poderíamos ter um João Paulo III ?). O contencioso com os países católicos permanece, como as guerras e o terror. Nunca a relação entre estados foi tão assimétrica. Estado minúsculo, mas com amplitude cósmica, o Vaticano tem muito a oferecer ao mundo. Não é possível, entretanto, ignorar o vazio de seus templos e a cultura urbana sem cristianismo.

O SIMULACRO

LVII

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Quem poderá levar adiante o que Karol Wojtyla chamava simplesmente de “meu trabalho”, principalmente pela inata percepção que tinha do papel de condutor de uma religião? Colunista da Folha, Marcelo Coelho considera que, antes de ser carismático (põe dúvidas a essa qualificação), João Paulo II foi “popular e mediático”.

Mas o que se espera de um líder carismático é sobretudo o poder de impor valores, de mobilizar consciências, de transfigurar, de converter as massas a determinada visão do mundo. Embora João Paulo II tenha exercido um papel importantíssimo na guinada política conservadora que tomou conta do planeta a partir da década de 1980, não me parece que sua atuação tenha tido efeitos substantivos sobre o comportamento, as idéias, as predisposições das massas que o consagraram como um dos maiores ícones do seu tempo.

LVIII

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Indiferente às críticas, terminado o seu "trabalho" por força do destino ou do Espírito Santo, o grande cadáver vestido de púrpura está neste momento inerte, como lhe é próprio. Mas continua ativo, passando imagens à sociedade do espetáculo (através das televisões do mundo inteiro), e como na Semana Santa do Cristo Morto, multiplicando fiéis. O medievalismo que caracteriza o teatro do vaticano sensibiliza, conquista. O mestre da propaganda (Wojtyla), que teria garantido que não morreria jamais, permanece vivo.

"Eu o vi... ele morreu com a serenidade dos santos", proclama o cardeal Ângelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, outro cotado para suceder a Wojtyla.

Na sexta-feira, 1º de abril, outro cardeal – Camilo Ruini – informava durante a missa na basílica, enquanto o papa agonizava diante da sociedade do espetáculo: “O papa já vê e toca o Senhor”.

Sodano já ameaçara declarar, durante a homilia na missa dominical da basílica, que se abrem os caminhos da santidade ao chamar Wojtyla morto de “João Paulo, o Grande”. Não chegou a ler esse trecho da homilia (Folha de São Paulo, 4 de abril), mas a mensagem ficou no texto distribuído à imprensa.

LIX

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Embora remeta a Alexandre, esse termo só é usado pela Igreja quando reservado aos santos. Somente foram grandes os papas santos Leão 1º e Gregório 1º.

A bem da Justiça com o grande morto, com certeza não pretendia ser santo.
“Faço apenas o meu trabalho”, disse a quem questionou o fato de permanecer oficiando frente às dores do corpo e das mazelas da idade.

Mas, na sociedade do espetáculo, em que todos querem repartir os benefícios da fama, não faltarão testemunhos exigidos pela Igreja para santificar um fiel.

MILAGRE ARGENTINO

LX

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Folha de S. Paulo, 4 de abril de 2005: “Em lágrimas, um argentino (tinha que ser) dizia ontem que havia rezado para o papa num 9 de abril (não especificou o ano) para que sua mulher engravidasse”.

Na sociedade do espetáculo, e como seria próprio da grandiloqüência de Karol Wojtyla, João Paulo II (com todo o respeito), não fez por menos: a mulher do argentino, atualmente, tem cinco filhos.

“Muere um papa. Nace um santo”, manchete de jornal na Guatemala.

LXI

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Nada espantoso. João Paulo II foi o mais perfeito político da nossa era e, como homem solidário, papel reservado ao papa, rezava sete horas por dia, conversando permanentemente com Deus. No leito de morte, encontra meios de passar pelo secretário particular recados aos “papa-boys” que permanecem em vigília na praça da basílica. É a visão da tela total: não há mais expectadores, todos participam. E, para o papa, uma garantia de que os negócios vão bem e têm futuro, pois os jovens multiplicam a pureza da Fé.

LXII

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Debord:

Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico... sempre que haja representação independente, o espetáculo se reconstitui.

A jornalista Elenara Iabel Cariboni analisou, em 5 de abril, a morte do papa à luz de Debord. Ela considera que

o caráter contestatório da obra de Debord incita a todos, numa luta acirrada contra a perversão da vida moderna que prefere a imagem e a representação ao realismo concreto e natural, a aparência ao ser, a ilusão á realidade, a imobilidade à atividade de pensar e reagir com dinamismo. O ponto de partida do livro (de Debord) é uma crítica ferina e radical contra todo e qualquer tipo de imagem que leve o homem à passividade e à aceitação dos valores preestabelecidos pelo capitalismo.

E mais:

Para o filósofo, cineastas e ativista francês a sociedade da época estava contaminada pelas imagens, sombras do que efetivamente existe, onde se torna mais fácil ver e verificar a realidade no reino das imagens, e não no plano da própria realidade. Pela mediação da imagens e mensagens dos meios de comunicação de massa os indivíduos em sociedade abdicam da dura realidade dos acontecimentos da vida, e passam a viver num mundo movido pelas aparências e consumo permanente de fatos, notícias, produtos e mercadorias. A sociedade do espetáculo é o próprio espetáculo, a forma mais perversa de ser da sociedade de consumo.

A santidade faz parte dos negócios da Igreja, que vende signos e ícones como aceita a sua doutrina (uma das razões do cisma histórico desencadeado pelo padre Martinho Lutero no seu famoso protesto na Alemanha).

Ainda em vida, a imagem do grande papa de braços abertos, esculpida em vidro, gesso, louça ou plástico, começou a ser comercializada nas melhores lojinhas de artigos religiosos em todo o mundo.

A beatificação que antecede a santificação está próxima por costumes implantados pelo próprio Wojtyla. Em seu pontificado realizou o maior número de beatificações e santificações da história da Igreja. Foram 1.300 beatificações e 480 santificações feitas por ele, em 26 anos, contra 808 beatificações e 296 santificações em toda a história dos papados, até chegar ao "papa pop". Cada santificação é um ícone da propaganda da fé, em cada país nasceu ou morreu o santo e o beato.

De olho da propagação da fé, ele reduziu todos os prazos (são de cinco anos) para beatificar madre Teresa de Calcutá, levando em conta a popularidade da religiosa em várias partes do mundo. A razão: o imenso carisma da madre, que penetrou com sua mensagem em praticantes de outras religiões, como os muçulmanos, os sikhs e os budistas.

OURO DO BRASIL

LXIII

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Carisma (produto), requisito da sociedade do espetáculo, é fator determinante (do agente) na Igreja para virar santo e propagar (“vender”) a mensagem da fé.

“A mensagem do papa e da madre Teresa, no fundo, é uma só”, assinala o cardeal português d. José Saraiva Martins, prefeito da Congregação das Causas dos Santos, desde 1998, e um dos cotados para novo papa. Se isso ocorrer, será o segundo papa português. A eleição do primeiro, no século XVI, teria sido "comprada" a peso dos jacarandás e do ouro do Brasil e da África, por D. Manuel I, nos tempos em que Portugal alargou o mundo ocidental-cristão. O ouro e a madeira de lei estão nos altares da basílica, fazem parte da sociedade do espetáculo.

Como faz dizer Bertold Brecht, pela boca de Galileu Galilei (um pobre gênio perseguido pelo Vaticano, acossado pela intimidação da Santa Inquisição) em peça teatral no palco real, fica uma conclusão :

"INFELIZ A TERRA QUE PRECISA DE HERÓIS".

Baixa o pano para o Intervalo (afinal não existem fins, encerramentos de novelas reais, na sociedade do espetáculo), enquanto se vela o papa e Roma sofre com a invasão de dois milhões de pessoas que esperam 10 horas para olhar o corpo e fotografá-lo com seus celulares (viva a mídia). A praça e as ruas em volta da basílica fedem a urina para lembrar que os homens são animais (racionais). A inflação impera no mundo dos negócios terrenos: o preço do cafezinho em Roma subiu de 1,5 para 2,5 euros.

As previsões dos donos de hotéis e similares é que o afluxo de pessoas vá render cerca de US$ 122 milhões nas duas semanas entre o velório, sepultamento e conclave. Em contrapartida, o custo do velório, sepultamento e novo conclave para a eleição do próximo papa, que ocorre a partir do dia 18 de abril próximo, agravará o quadro financeiro do vaticano. Mais um pesado fardo para o sucessor de João Paulo II, que já tem a sombra de Woityla a acinzentar-lhe a futura performance.

Quem será o próximo ? Como agirá o próximo? Só um espetáculo com um ator melhor é que, na avaliação dessa mesma sociedade, fará esquecer o ator anterior.

Mas o espetáculo é cruel e iconoclasta, destruidor de ícones. Na linguagem popular , “quebra santos”, pois nada respeita.

LXIV

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A bolsa de apostas em Londres paga 12 por um para quem apostar em Cláudio Hummes, o cardeal brasileiro que mais tem chances de virar papa, afinal um em cada dez católicos é brasileiro. Aliás, o próprio Wojtyla em uma das visitas ao Brasil declarou encantado com os cânticos de “João de Deus” e os gritos de fica, fica: “O papa é brasileiro”.

No dia do sepultamento, com o corpo encerrado em três caixões (um de cipreste, outro de alumínio – no passado era de chumbo – e o último de carvalhos), o rosto coberto por um véu, a multidão que tomava a Praça de São Pedro, clamava aos cardeais]: “Santo súbito”, Santo, já...

Esvaziada a praça, garis de Roma recolheram o lixo e lavaram todo o grande palco (formado por arcos que lembram braços abertos, tendo ao centro um obelisco). A partir do dia 18, o povo atenderá a esses abraços e se concentrará na praça, olhos numa chaminé, à espera da fumaça branca, aguardando um novo papa... será um italiano, será um africano, será um sul-americano ?

O que se sabe ao certo é que recomeçará o espetáculo...


Referências bibliográficas

ANGELI, Arnaldo Filho, cartunista da Folha de São Paulo e UOL

ADORNO,Theodor e HORKHEIMER, Max, “A indústria cultura: o esclarecimento como mistificação de massas”. In: Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, 1985.

ALI, Tariq, teólogo, entrevista à Folha de São Paulo, 4/4/2005.

ARIAS, Juan, jornalista de El País, entrevista em 5/4/2005.

BRECHT, Bertold, Galileu Galilei.

BAUDRILLARD, Jean, O sistema dos objetos, 1968.

CARIBONI, Elenara Iabel, jornalista no site Novae, Porto Alegre, em 5/4/2005.

COELHO, Marcelo, jornalista, Folha de S. Paulo.

CONY, Carlos Heitor, jornalista, escritor e cronista in Folha de São Paulo, 4 e 5/4/2005.

CORNWELL, John, The pope in winther – the dark face of John Paulo II´s papacy (O papa no inverno, a face sombria do papa João Paulo II), editora Vikling, 2005.
 
DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo, Lisboa, Edições in Móbile, 1991 (pág. 13-25).

EAGLETON,Terry. "A Igreja sou eu", in: Caderno Mais, Folha de São Paulo, 3/4/2005.

ÉPOCA, revista, São Paulo, 7/6/2003.

FEUERBACH, Luiz. A essência do Cristianismo.

FOLHA DE SÃO PAULO, jornal, São Paulo, abril de 2005.

GUEVARA, Che, médico e escritor argentino, frases, in: "Sem perder a ternura", compilação de frases feita por Emi Sader, Record, edição de 2001

KAROL, Wojtyla, ator, autor teatral, religioso que durante 26 anos viveu o "trabalho" (como assim denominou seu pontificado) de conduzir a igreja católica como o Papa João Paulo II, sem sombra de dúvida O GRANDE.

 


Cubatão, São Paulo, 9 de abril de 2005
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Manuel Alves Fernandes é jornalista profssional há 37 anos, graduado em Comunicação Social e Direito pelas faculdades de Comunicação e Direito da UniSantos, responsável pela Sucursal em Cubatão da Tribuna de Santos

, pós-graduando em Propaganda Eleitoral e Marketing Político, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

 

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