Fórum
O Gênero no Cinema Brasileiro da Retomada
Feb 28, 2006
Inez Pereira da Luz analisa as transformações do sistema cinematográfico a partir da perspectiva do gênero e sua relação com outros meios de comunicação.
A cultura do audiovisual é constituída por um conjunto de meios de comunicação como sistemas de signos (rádio, cinema e TV) que funcionam em redes (salas de cinema, redes de distribuição via ondas eletromagnéticas – TV aberta, fibras óticas e satélites – TV fechada e Internet) e suportes (os aparelhos VHS e DVD, CD-rom) por onde as suas linguagens circulam e pelas midias e hipermídias (as redes telemáticas), que são esferas culturais criadas a partir das relações, evoluções e conexões desses meios de comunicação como linguagens dentro das redes.
A dinâmica dessa cultura é conduzida pelo trânsito, ruído e cruzamento de suas mensagens e pelo movimento evolutivo das condições materiais que têm início no final do século 19 e começos do século vinte, no bojo de uma incessante revolução tecnológica cujas ramificações recentes são as redes mundiais de telecomunicações.
Nessa pesquisa, partiremos da premissa acima para investigar o cinema como sistema inserido na Cultura do audiovisual e, como isso vem alterando a sua linguagem e gêneros, possibilitando a renovação e integração de signos novos, bem como, transformando informações que estão nas fronteiras ou fora desses sistemas.
Trata-se de uma pesquisa cujo objetivo geral é investigar a linguagem do cinema brasileiro contemporâneo, inserida nessa cultura e produzida nessas condições, dialogando com os diferentes sistemas culturais. O foco da pesquisa proposta é o gênero dentro do cinema como uma composição aberta em diferentes processos de combinações. Não se propõe fazer aqui uma classificação dos gêneros, mas investigar alguns procedimentos criados pelos sistemas em que estes foram reinventados e estão inseridos. Em um primeiro momento vamos analisar os filmes Central do Brasil (Brasil – 1995) e Os diários de motocicleta (Brasil – 2004), do diretor Walter Salles Jr. Pretendemos ver a composição do gênero nessas linguagens como uma combinação que possa revelar o diálogo com a Cultura do audiovisual que o abriga com outros sistemas. Ao traçar essa combinatória, é importante verificar como o gênero como codificação tão presente e modificada ao longo da história da cultura, é reprocessada para a criação de novos gêneros, qual é a natureza do diálogo estabelecido e quais os sentidos construídos a partir dele. Essas propostas de investigação serão pesquisadas em outros filmes produzidos no Brasil a partir de 1994, em um segundo momento da pesquisa.
Essa linha de raciocínio se encontra em diversas formulações teóricas, começando por M. Bakhtin, e o nosso ponto de partida é a sua concepção de gênero, delineada nos estudos sobre a natureza do enunciado. Segundo M. Bakhtin, a linguagem é formada por um conjunto de enunciados e há “tipos relativamente estáveis de enunciados” que são os “gêneros do discurso”, ou são eles que caracterizam determinada linguagem/discurso. Ele os classifica em gêneros primários (construídos no cotidiano) e secundários (são os mais complexos (artístico, literário e científico). Estes últimos são combinações de gêneros e modificações, inclusive dos gêneros primários, que a partir dessa incorporação, deixam de estar vinculados “à realidade imediata que os criou” [1]. Para compreender melhor essa conceituação, recorremos a outra obra do teórico russo, sobre a poética de Dostoiévski, em que ele redimensiona o conceito de gênero, apontando-o como uma pluralidade de gêneros que se encontra em diversos sistemas vinculados à comunicação verbal ao longo da história da humanidade. Para Bakhtin, há tantos gêneros quantas necessidades de comunicação e, “ao nascer um novo gênero nunca suprime nem substitui quaisquer gêneros já existentes. Qualquer gênero novo nada mais faz que completar os velhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existentes” [2]. Seguindo a lógica dessa conceituação, construímos a nossa primeira hipótese: o gênero cinematográfico é reinvenção de uma codificação cuja historicidade se encontra na Cultura e só pode ser entendido dentro do procedimento dialógico que é inerente ao processo de produção de linguagens. Como o cinema vem ampliando o universo dos gêneros dentro da Cultura?
São os Formalistas russos [3] que, entre os anos de 1920 e 1930, estudam o gênero cinematográfico a partir da relação desse sistema com outros como a literatura, o teatro e as tradições populares e, segundo eles, embora essa codificação esteja na Cultura, ela é submetida à linguagem do cinema ou só foi possível a recodificação a partir das condições técnicas do cinema que geraram as regras de composição dessa linguagem. Considerando o desenvolvimento tecnológico de 1930 aos dias atuais que vem modificando a natureza desse sistema, podemos considerar os gêneros criados pelo cinema como exclusivos desse sistema?
É com M. McLuhan em seus numerosos ensaios [4], que vamos poder distinguir os meios de comunicação como uma rede que têm origem na era eletrônica e forma uma cultura em que a simultaneidade e mistura de códigos e linguagens fazem parte de sua natureza. Diante desse pensamento, traçaremos a nossa terceira hipótese: como serão as relações entre os outros sistemas da comunicação (o rádio, a TV e o jornalismo) e o cinema, na perspectiva do gênero?
O cinema brasileiro contemporâneo inserido na Cultura do audiovisual é o tema dessa pesquisa e, conhecer os processos de produção de suas linguagens é fundamental, vez que não estamos investigando um sistema desvinculado de suas condições de produção e circulação. É urgente a necessidade de estudá-lo como mediação da TV aberta e fechada, da Internet e dos suportes VHS/DVD. O cinema produz linguagens que vão circular por vários caminhos. Como elas são estruturadas? Como os sistemas televisual, jornalístico e multimídia vêm interferindo nessa codificação? Quais são as transformações operadas em sua codificação para se inserir nesse ambiente audiovisual marcado por relações e conexões tão díspares? Estudar esse sistema da perspectiva do gênero é um dos caminhos que revelam as possibilidades desse sistema e dessa Cultura, ampliando o campo conceitual. Do ponto de vista acadêmico, esse estudo pretende fornecer subsídios teóricos para a compreensão da produção de linguagens nas fronteiras dos sistemas audiovisuais. Ao investigar o cinema brasileiro nessa perspectiva, pretendo sair daquela posição de pesquisadora que vê o mundo pelo “retrovisor”, como afirmou McLuhan. Segundo esse grande pensador da cultura tecnológica, é indispensável o pesquisador entender o presente e o passado para formular soluções para o futuro, de um ponto de vista crítico e inovador.
Método
Essa pesquisa é resultado de vários processos investigativos. O passo inicial foi um amplo levantamento de entrevistas/depoimentos de profissionais que fazem cinema no Brasil, publicadas em livro [5], revistas [6] e jornais. São veteranos do Cinema novo, profissionais da publicidade e do vídeo-clip, documentaristas, curta-metragistas, produtores de imagens cuja cultura é formada pelo cinema, TV, desenho animado, publicidade, Internet e vídeo-game. Um outro passo foi investigar as condições de produção cinematográfica e concluir que não são exclusivamente cinematográficas. As produtoras que fazem cinema no Brasil hoje dedicam-se na realização de institucionais para TV, telenovelas/séries, vídeo-clip e produção de comerciais para TV e internet. São elas: Globofilmes, Videofilmes (empresa que produz séries de documentários para TV, comerciais e filmes), Conspiração filmes (empresa de vídeo-clip que vem realizando filmes nos últimos dez anos), O2 (agência de publicidade que realiza séries televisivas), entre outras. Em outro levantamento realizado em revistas especializadas [7], concluí que fora dos Estados Unidos, (Alemanha, França, México, Argentina e Brasil) a produção de cinema tem sido desencadeada por políticas públicas de apoio ao cinema para circular em espaços criados pelo desenvolvimento tecnológico, como a TV por assinatura, Internet, VHS e DVD, criando leis de incentivo fiscal para TVs que produzam cinema (França e Alemanha). Outra conclusão desse levantamento é que na China está havendo uma revolução no audiovisual causada pela tecnologia digital (câmeras e edição eletrônica). Um outro documento de extrema relevância para a pesquisa em andamento é um dossier realizado pelo Cahiers du Cinèma [8] sobre as fronteiras das linguagens audiovisuais, em que comprova a fragilidade do código cinematográfico narrativo e a supremacia do hibridismo como marca das linguagens audiovisuais, do filme ao vídeo game.
Um outro procedimento utilizado nessa pesquisa foram as acaloradas discussões em grupos de estudo de cinema, realizadas no Programa de Comunicação e Semiótica na PUC/SP. Nessas reuniões, sobre o design dos formatos do audiovisual (para TV, cinema, Internet e game), tivemos entrevistas com alguns diretores (Eliane Caffé – diretora de vários filmes, entre eles Os narradores de Javé (2002) - e Kiko Goiffman – vídeoasta e diretor do documentário 33 (2004) sobre as tendências do audiovisual no Brasil.
As atividades que vêm sendo realizadas há quatro anos por alunos do curso de Rádio e Tv, da Universidade Anhembi Morumbi, sob minha coordenação, também vêm contribuindo na comprovação das minhas hipóteses. São pesquisas teóricas e exercícios criativos que revelam a percepção desses jovens no tratamento das linguagens audiovisuais e dos gêneros.
A pesquisa bibliográfica faz parte das minhas atividades acadêmicas desde 1986, ano de ingresso na Universidade Anhembi Morumbi. A década de 1980 é o início desse processo de transformação da Cultura do audiovisual no país, desde então venho pesquisando os meios de comunicação nas suas inter-relações e alterações de linguagens que compõem a cultura do audiovisual. A fundamentação teórica das minhas pesquisas se encontra na Semiótica russa, com aqueles teóricos que originaram o pensamento semiótico, como Mikhail Bakhtin, os Formalistas (Boris Eikhenbaum, Yuri Tynianov, Boris Kazansk, Victor Sklovski e Adrian Piotrovski) [9] e os integrantes da Escola de Tartu (I. M. Lotman e V. Ivanov) [10]. Foram eles que criaram uma teoria que permite a compreensão da cultura a partir da prática significante, ou constituída por linguagens que se articulam e que são criadas a partir do desenvolvimento científico/tecnológico.
Finalmente, a minha experiência como cinéfila tem me levado a acompanhar lançamentos de filmes estrangeiros e brasileiros, a sua difusão por meio de campanhas publicitárias, making of, entrevistas e na sala de cinema. É essa experiência que vem despertando indagações sobre a estética gerada por esse meio, junto com uma maturidade para entender as organizações sensoriais criadas por essa cultura em gerações jovens cuja experiência com o cinema se dá muito mais via TV, vídeo game e Internet. Os filmes para essa análise, foram vistos primeiro na sala de cinema e em tela grande, depois em DVD e VHS. Ao analisá-los é imprescindível considerar a relação com os aparelhos de difusão, são eles que organizam a sensorialidade para a fruição de uma obra audiovisual. A sensorialidade criada pela sala de cinema não é a mesma do espectador de TV e da Internet. E a linguagem deve se adequar a esse espectador que vê aos pedaços, com o controle remoto ou com o mouse.
A leitura do filme Central do Brasil se deu em várias etapas – no cinema e nos outros meios, comparando com a narrativa clássica do cinema e com um tipo de organização de linguagem contemporânea, apoiada numa concepção de imagem construída com inúmeras referências – das tradições do cinema brasileiro a aquelas codificações de outros sistemas. O filme Os diários de motocicleta foi visto quatro vezes na sala de cinema e acompanhei meticulosamente os vários mecanismos de lançamento do filme, nos jornais impressos, Tv e Internet.
Resultados
Os resultados dessa investigação são ainda parciais, vez que a pesquisa se encontra ainda em andamento. Esses primeiros são decorrentes de pesquisa bibliográfica.
1. A ampliação do universo dos gêneros pelo sistema cinematográfico
As técnicas cinematográficas – câmeras e edição – ainda nas primeiras décadas do século vinte, possibilitaram o surgimento um sistema de linguagem que codificou alguns gêneros cuja origem se encontra na cultura, como a literatura, o teatro e as tradições circenses. São eles: o burlesco, o western (modelizado de lendas e novelas populares) e o melodrama, submetidos à narratividade. É a partir do desenvolvimento técnico que o cinema amplia o universo de gêneros, dentro da sua codificação - o narrativo.
2. Os gêneros cinematográficos estão nas fronteiras dos sistemas audiovisuais
O desenvolvimento técnico, entre os anos de 1930 a 1960, trouxe as técnicas de gravação, câmeras leves, negativos mais sensíveis, som direto e sincronizado, o surgimento e estruturação da TV com as suas câmeras eletrônicas e o avanço das tecnologias de impressão e de distribuição de sinais, propiciando a amplitude dos meios de comunicação – rádio, tv e cinema e impressos– como sistemas de linguagens. As linguagens, geradas por esses meios, criaram novos gêneros, as comédias populares, os documentários/reportagens, a fusão de documentário e ficção no cinema, a partir do diálogo com a cultura, sobretudo com aqueles gêneros do cotidiano – diálogos, canções, narrações orais, discursos diretos, depoimentos, entre outros ampliando o universo dos gêneros.
3. As relações entre os sistemas de comunicação – cinema, rádio, jornalismo e Televisão - na perspectiva dos gêneros.
O desenvolvimento técnico possibilitou a consolidação do cinema como sistema e fortaleceu as suas relações com o rádio, a TV e o jornalismo, vez que são as condições que permitiram o aprimoramento das linguagens desses sistemas que se movimentam dentro do ambiente da Cultura e são reveladas via composição dos gêneros. Por um lado, gêneros cinematográficos são modelizados por sistemas como a História em quadrinhos e Televisão/séries, o western e o noir, por exemplo. Por outro lado, as comédias televisivas e de rádio, modelizações dos gêneros orais apoiados na fala, podem transitar pela linguagem do cinema, na sala do cinema, como ilustra muito bem, o filme A Era do rádio, de Woody Allen. Entre os anos de 1940 e 1960, as câmeras leves e portáteis e o som sincronizado ou som direto, possibilitaram a criação do gênero documental (com entrevistas, depoimentos, imagens gravadas nas ruas, fusão de gêneros do cotidiano) combinado à ficção, em um hibridismo que se confunde com o jornalismo audiovisual; essas são experiências, principalmente do cinema neo-realista na Itália, nouvelle vague na França e cinema novo no Brasil.
4. Um novo modelo de linguagem cinematográfica - a adequação do cinema como mediação na cultura do audiovisual, na perspectiva do gênero.
A partir de 1980, o desenvolvimento tecnológico ampliou a cultura do audiovisual, mediante o avanço das técnicas de produção e edição de linguagens, sobretudo com a informática, e, o surgimento das redes (as TVs aberta – broadcast, VHF e UHF- e, Internet) e suportes como o VHS e DVD, por onde as linguagens circulam. As técnicas de produção de linguagem permitem as conexões até então díspares, entre sistemas, por exemplo, a fusão entre linguagens gráficas e cinematográficas/videográficas. O universo dos gêneros (o surgimento de gêneros digitais – com as paginas de internet e o infojornalismo) se amplia agora com essa combinação de linguagens de diferentes origens. A amplitude do movimento dessa cultura traz a necessidade de adequação das linguagens às máquinas semióticas por onde elas circulam.
A produção de cinema no Brasil é retomada a partir de 1994, depois do fechamento da EMBRAFILME, órgão público de fomento à produção e distribuição de filmes no Brasil, criada em 1969. Uma boa parte dessa filmografia é resultado de uma política de cinema que é mantida até os dias atuais. É dentro da perspectiva delineada acima, que compreendemos o cinema brasileiro contemporâneo: filmografia que nasce da mistura de tecnologias, repertórios e meios de difusão.
Os filmes analisados, Central do Brasil e Os diários de motocicleta, trazem a combinação dos gêneros road movie, melodrama, epistolar e documental, junto com a modelização de cartas e diários, compondo uma narrativa fragmentada, que é revelada a partir da codificação de cada gênero existente nela. Esse é um modelo de linguagem que rompe com a continuidade narrativa, característica do cinema, adequando-se a Cultura constituída por linguagens em fragmentos que se cruzam nos caminhos das redes e suportes.
Discussão
Como foi mencionado na introdução, o objetivo geral dessa pesquisa é compreender a natureza das linguagens produzidas pelo cinema inserido na Cultura do audiovisual. Compreendo o gênero segundo M. Bakhtin, como “enunciado relativamente estável” ou modo de organização do discurso da comunicação verbal. Embora admitamos a existência do gênero como uma codificação criada pela cultura, portanto, reconhecida pela previsibilidade do discurso, reconhecemos que essa codificação não é estática, porque está dentro da cultura que se movimenta em múltiplas direções. O cinema vai incorporar esse tipo de codificação dentro das regras que compõem a linguagem cinematográfica, trazendo os gêneros - o melodrama, road movie, western, o noir, o musical, entre outros - submetidos à narrativa linear, codificação caracterizada pela unidade do foco narrativo e pela ilusão de continuidade espaço/temporal.
O avanço das condições técnicas, entre os anos de 1930/1960, traz novos meios de comunicação, ampliando a cultura do audiovisual. Os gêneros criados pelo cinema a partir dessas condições técnicas vão configurar a proximidade entre os meios (rádio, TV e jornalismo e cinema), estando, portanto, nas fronteiras do audiovisual. A poeticidade prosaica e imediatista desses meios é incorporada pelo cinema, via gêneros. Uma das primeiras conclusões desse trabalho é: na ampliação do universo dos gêneros, esses já não se configuram como especificidades do cinema, mas da cultura do audiovisual. Por outro lado, o fortalecimento do cinema dentro dessa cultura, faz com que aqueles considerados específicos desse sistema migrem para outros sistemas, ampliando as possibilidades de comunicação. Os gêneros cinematográficos se ampliam e vem sofrendo modificações dentro da cultura tecnológica, em função das relações estabelecidas entre os sistemas e as evoluções das condições materiais, como as ferramentas que permitem gerar novas e incessantes codificações.
O desenvolvimento tecnológico a partir dos anos de 1980, ampliou não só as possibilidades de produção, mas também de circulação das linguagens. O movimento desses sistemas dentro da Cultura do audiovisual traz uma outra esfera cultural que são as mediações ou mídias. São estas que vão gerar um novo modelo de linguagem que é resultado da mistura de ferramentas – da película às câmeras digitais – para circular em máquinas como o computador, a tv e em suportes como o DVD/VHS.
Vimos essa adequação de linguagens mediante a composição do gênero. A mistura de gêneros é procedimento de adequação de linguagem (combinações previstas na lógica orgânica do gênero, como afirmou Bakhtin) para circular nos suportes e redes. Se os meios de comunicação dialogavam uns com os outros via gêneros, agora as novas mediações geram linguagens cuja natureza é determinada pela combinação de vários gêneros. A fragmentação da narrativa audiovisual é constituída por eles, como códigos/fragmentos com a sua previsibilidade reconhecida pelo espectador que vê aos pedaços, que seleciona e muda de canal, e volta e continua o filme. As linguagens produzidas nessa cultura prevêem um espectador, cuja sensibilidade/percepção tem sido criada pelas máquinas semióticas contemporâneas. É neste ambiente que funcionam linguagens constituídas por fragmentos e justapostas, que se cruzam e que possibilitam uma multiplicidade de pontos de vista.
Antes de entrar no foco da pesquisa, que é a composição do gênero no cinema brasileiro contemporâneo, é necessário um brevíssimo esboço dessa filmografia produzida a partir de 1994. Entendo essa filmografia como resultado de processos de produção que misturam ferramentas tecnológicas (película, tecnologia, eletrônica, processos de impressão gráficos, etc), experiências profissionais e culturais diversas, espaços geográficos e ambientes culturais. É fundamental, por outro lado, não subestimar o trânsito dessa filmografia nos meios de difusão existentes e predominantes, já mencionados, exaustivamente.
Assiste-se ao revigoramento dos gêneros nessa filmografia, do melodrama ao road movie, comédias, tragicomédias e várias fusões. Um dos gêneros que vêm crescendo e preenchendo cada vez mais espaços nas redes e suportes de circulação de linguagens, é o documentário. No cinema brasileiro esse gênero vem percorrendo um caminho de combinações com outros gêneros, para formar a linguagem do filme de ficção, compondo uma narrativa relativamente aberta, contrapondo àquela fechada, codificação do cinema enquanto sistema. Faz parte desse projeto analisar alguns filmes onde essa recodificação aparece, incorporando prosódias, narrações dentro de narrações, entre outras mencionadas acima.
A composição do gênero nos filmes Central do Brasil e
Os Diários de Motocicleta, de Walter Salles Jr
O objeto de análise nessa primeira parte da pesquisa são os filmes Central do Brasil e Os diários de motocicleta, de Walter Salles Jr. tendo como ponto de partida a composição do gênero na construção das linguagens. O filme Central do Brasil (Brasil, 1995), é constituído pela mistura e combinação dos gêneros road movie/documental, o melodrama e o epistolar. O filme abre com um plano médio de uma personagem já conhecida de um filme anterior do diretor – o documentário Socorro nobre - e outras personagens na mesma seqüência, numa fusão de documentário e ficção. Em seguida o melodrama se instala e a narrativa se divide em duas – melodrama e road movie. Na segunda parte os gêneros se fundem, embora permaneçam alguns fragmentos que trazem a previsibilidade, característica desse tipo de codificação. Por exemplo, no melodrama, a redenção da velha senhora se dá antes do final do filme, encerrando o melodrama, e a narrativa continua com o road movie cuja marca é a procura ou o sentido de busca pela estrada. O personagem sai em busca do pai e encontra os irmãos no final do filme. É um filme de ficção sobre um país moderno em que alguns membros dessa sociedade não dominam a técnica da escrita. É um road movie que traz imagens documentais do que está na estrada e em suas margens. É metalinguagem quando, mediante o epistolar, trata da ausência de um código de tradição milenar na formação da sociedade moderna. Essa fusão de códigos marca a fragmentação da linguagem do filme.
Em Os diários de motocicleta, vimos uma adaptação dos diários e cartas de Che Guevara, junto a incorporação de outros gêneros como o burlesco, o romanesco, ensaios, poesia, diálogos e monólogos. O documental ao lado do road movie metaforiza o espaço latino americano. Embora o fio narrativo seja conduzido pelo road movie, este é cortado simetricamente por episódios/seqüências fílmicas modelizadas pelos gêneros citados acima.
Essa fusão de gêneros além de revelar as relações dos filmes com outros sistemas de comunicação, a convergência de gêneros – epistolar, documentário, melodrama e road movie – constitui a fragmentação da narrativa ou o rompimento da unidade espaço/temporal que caracteriza as linguagens audiovisuais contemporàneas, é a forma de adequação dessas linguagens à cultura do audiovisual. Não são apenas gêneros que estão nas fronteiras dos sistemas, mas eles constituem a narrativa de uma mídia/mediação dessa cultura. Essa narrativa fragmentada prevê uma percepção também marcada pela descontinuidade ou uma sensorialidade caracterizada pela tatilidade, como definiu McLuhan [11], e que hoje está muito próxima daquela do jogo, onde se funde sensibilidade, reflexos rápidos, memória e destreza do espectador/jogador.
Notas
- M.Bakhtin. Estética da criação verbal. SP. Martins Fontes, 1992: 274.
- M.Bakhtin. Problemas da poética de Dostoiévski. Ed.Forense universitária, 1997: 274.
- Alberá, François. (1998). Los formalistas rusos y el cine. Barcelona: Paidós
- M. McLuhan. & E. Carpenter (1980).. Revolução na Comunicação. RJ: Zahar ed.
- NAGIB, Lucia. O Cinema da retomada. Entrevistas. SP: ed.34.
- A revista brasileira Cinemais traz em suas primeiras páginas entrevistas com profissionais do cinema brasileiro e latino-americano (diretores, fotógrafos, produtores e documentaristas). Publicação trimestral. RJ: Editorial cinemais.
- Où va le cinema français? (2000) Revista Cahier du cinèma nº544, França/Paris.
- Aux frotières du cinema. (1998) Revista Cahiers du cinema hors série França/Paris.
- Dois livros são fundamentais nesse trabalho: o primeiro é a coletânea organizada por François Alberá, Los formalistas rusos y el cine, já citada. O outro é Analogia do dissimilar. Irene machado. SP. Perspectiva. 1989.
- Irene Machado.(2003). Escola de semiótica. A experiência de Tartu/Moscou para o estudo da cultura. SP: ateliê ed.
- Segundo McLuhan os meios elétricos – rádio, cinema, TV e computador – ampliaram os sentidos como portas abertas para o conhecimento, são extensões sensoriais que formam um ambiente global em que o homem está inserido. McLuhan escritos esenciales. (Eric Mcluhan org.). Barcelona, Paidós, 1969.
Referências bibliográficas
ALBERÁ, François. (1998). Los formalistas rusos y el cine. La poética del cine. Barcelona: Paidós.
AUX FRONTIÉRES DU CINEMA. (1998). Cahiers du cinema. Hors Séries.
BAKHTIN, M. (1992). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.
__________ . (1997). Problemas da Poética de Dostoiévski. RJ: Forense universitária.
CINEMA DIGITAL(2000). Revista de Cinema. Nº: 4:28.
CINEMA DIGITAL. (2002) Revista de Cinema Nº 28:70
CINEMA DIGITAL (2001). Revista de Cinema Nº 14:50
CINEMA DIGITAL(2002). Revista de Cinema Nº 24:49
CINEMA NA INTERNET (2000) Revista de Cinema. Nº 7 :44
CONVERSA COM PAULO CALDAS E LIRIO FERREIRA (1997). Revista Cinemais nº 4:7-38.
ENTREVISTAS. Cinema de Poesia (2003) Revista Cinemais nº 33. RJ. Publicação trimestral.
MACHADO, Irene de Araujo. (2003). Escola de semiótica. A experiência de Tartu/Moscou para o estudo da cultura. SP: Ateliê ed.
_____________________. (1989). Analogia do dissimilar. SP: Perspectiva.
MASAGÃO, Marcelo (2000) O cinema feito no computador. Revista de Cinema, nº 4:34
MCLUHAN, M. & CARPENTER, E. (1980). Revolução na Comunicação RJ: Zahar ed.
MCLUHAN, Eric. (1969). McLuhan - Escritos esenciales. Barcelona: Paidós.
NAGIB, Lucia. (2002). O Cinema da retomada. SP: Ed.34.
SCHNAIDERMAN, Boris. (1979). Semiótica russa. SP: Perspectiva.
OÚ VA LE CINEMA FRANÇAIS (2000). Cahiers du cinema nº 544.
Esta pesquisa foi financiada pela Diretoria de Pesquisa e Extensão da Universidade Anhembi Morumbi e apresentada no Núcleo de Pesquisa 153 – Semiótica da Comunicação, no XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM 2004, ocorrido em Porto Alegre de 30 de agosto a 03 de setembro de 2004.