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O império das aparências
Feb 25, 2006
A queda de qualidade e a padronização observadas nos produtos culturais mais consumidos pelas sociedades modernas há muito suscitam polêmicas e debates calorosos; foram por muitos condenadas,
O presente artigo tem por finalidade principal a produção de uma análise comparativa de dois importantes fragmentos de textos dos autores alemães Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, da Escola de Frankfurt, em seu livro Dialética do Esclarecimento, notável por tecer uma devastadora crítica à chamada indústria cultural, e o anti-iluminista francês Jean Baudrillard, teórico respeitável da comunicação em geral, em Simulacros e Simulação, e O Sistema dos Objetos, obras que discutem, entre outros temas, a força e a valorização da imagem na sociedade moderna, bem como sua conseqüente e progressiva desestruturação.
Se Raul Seixas não tivesse recebido a alcunha de ‘Profeta do caos’, Jean Baudrillard poderia reivindicá-la e ostentá-la até mais honrosamente que o endeusado roqueiro brasileiro. Ajustar-se-lhe-ia como uma luva, por assim dizer, dado o fato de ele ser considerado por muitos, um autor apocalíptico, provavelmente por ter sofrido forte influência do Estruturalismo, que acabou, finalmente, abandonando.
Os três autores, embora não tenham escrito a priori sobre o mesmo tema, aproximam-se pelo fato de apresentarem um visível traço comum: o indisfarçado tom pessimista de seus textos no que tange à produção cultural contemporânea, de acordo com eles, esvaziada de conteúdo e de originalidade; à sociedade em si, descrita como contraditória, decadente e fútil, facilmente manipulável e mais inclinada a valorizar a aparência do que a essência; e à falta de horizontes e/ou soluções para esses problemas. Quase celebram a instauração do caos, do fim da linha propriamente dito para tudo.
Jean Baudrillard, que ainda vive, (está na casa dos setenta anos) e permanece produzindo sistematicamente, pode ser considerado não um congênere, mas sim, um pensador alinhado com autores consagrados da Escola de Frankfurt tanto nesse aspecto de semelhança catastrofista, (o que torna esta análise interessante sob esse ponto de vista), quanto no do padrão estilístico de seus livros. Ele escreve de modo inusitadamente espiralado, com clara valorização da forma, revelando um trabalho que se aproxima do literário. Pode ser esta uma maneira de se ter traduzida a constante efervescência natural do pensamento dele.
Já, Adorno e Horkheimer, por sua vez, exibem uma escritura também acurada e inteligente, porém com menor rigor de estilo, dando lugar à sintetização. Sob o calor da Segunda Guerra Mundial, fugiram da Alemanha e se auto-exilaram nos Estados Unidos, o paraíso da indústria cultural. Lá, entraram em contato mais aberto com a profusão de efeitos oriundos de uma produção cultural absolutamente padronizada e sobre isso escreveram um livro denso, que, numa mera leitura exploratória, parece carente de nexo, de um fio condutor de idéias. Não se observam as necessárias transições entre parágrafos, um pensamento não conduz coerentemente a outro, e em muitos momentos tem-se a sensação de não se estar lendo sobre determinado assunto que se desdobra, mas sobre vários assuntos entrecortados em temas e sub-temas, o que chega a aturdir um leitor interessado em aprofundar-se na obra.
Dialética do esclarecimento é, na realidade, menos um livro ortodoxo, com início, meio e fim, e mais a montagem de uma coletânea de artigos diversos e desvinculados cronologicamente uns dos outros, mas que, organizados, resultam numa grande mensagem, a qual se num primeiro momento é difícil de ser assimilada pela aparente falta de coesão dos elementos componentes, uma vez devidamente compreendida, revela-se oportuna, plausível e ainda hoje atual e provocadora de reflexões, embora tenha sido elaborada em plena década de 40.
O império das aparências
Quando os chamados “pessimistas de plantão” Adorno e Horkheimer concluíram que a mais forte característica de nosso tempo é a venda de uma falsa felicidade, o cenário mundial não parecia contextualizar bem essa idéia. Corria a Segunda Grande Guerra Mundial e a febre consumista, consolidada com a explosão dos shopping centers, a força da televisão e a Internet ainda não eram os fenômenos sociais que vivemos hoje.
Em sua permanência nos Estados Unidos, eles fugiam da Alemanha por conta de uma suposta perseguição por parte de autoridades nazistas, puderam observar mais detidamente nas cidades de Nova Iorque e Los Angeles, entre outras coisas, as formas arquitetônicas inquietantemente simétricas das edificações então denominadas de “projetos de urbanização”, que, em nome da higienização e perpetuação do indivíduo independente, na realidade, apenas o submetiam sem piedade ao poder do capital. Tanto os bucólicos bangalôs cheios de personalidade quanto os prédios antigos com seu estilo próprio evocando tradição e classe, estavam agora irremediavelmente condenados ao descarte. Em seu lugar, a presença ostensiva das habitações assepticamente iguais e despersonalizadas dominava os espaços.
Um claro indício da instauração de uma tendência insidiosa que aos poucos se delineava nas mentes inconformadas dos autores, e que eles viriam mais tarde a comprovar: a padronização, que imperaria e orientaria com igual força a produção cultural, artística, comunicacional, industrial, e por conseguinte, o próprio comportamento humano.
Cinema, rádio e revistas já se assemelhavam tanto quanto roupas, sapatos, carros e alimentos. "Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. (...) Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança" (Dialética do esclarecimento, pág. 114).
O ponto de partida da argumentação dos autores para explicar esse modelo homogeneizado de produção seria a situação de crise que ocorria em escala mundial por causa de fatores como: crise da influência da religião católica; caos social; organização cultural em baixa, originando fragmentação – característica maior da cultura de massas. A conjunção dessas situações pavimentaria o caminho para o estabelecimento da cultura da padronização, lógica de funcionamento da chamada indústria cultural.
Com o intuito declarado de conquistar/escravizar o público, embora tentando mostrar que o atende e o trata como indivíduo, a indústria cultural empenha-se em produzir tudo para atingir a todos, “respeitando suas diferenças”. No entanto, segundo Adorno e Horkheimer, limita-se a produzir tudo padronizadamente, de acordo com os ditames dos donos do poder, que apenas alimentam a ferocidade do capitalismo.
A mesmice fatal
Assim, filmes cinematográficos que são lançados com o intuito de se destinar a faixas específicas de espectadores: crianças, negros, minorias étnicas, homossexuais, mulheres de meia-idade, adolescentes, são, afinal, estupidamente iguais. Todos concebidos mediante a implacável lógica da homogeneização.
Criam e recriam as previsíveis expectativas, levam ao almejado desfecho, não sendo concebidos para edificar ou provocar reflexão, mas sim para serem rapidamente consumidos e esquecidos. Têm todos eles a mesma marca, a simplificação, claramente observável também na esfera musical, na dramaturgia, nos livros e principalmente na publicidade.
Produtos culturais brasileiros
Nessa linha de raciocínio, vale incorporar a esta análise, exemplos que ocorrem no Brasil: é ilusório pensar que os grandes sucessos do país, como pagodes, sertanejos, axé music são estilos musicais diferenciados. São tão somente estilos simplificados e facilmente memorizáveis de se fazer música para ser consumida e decorada rapidamente. Uma vez assimilada, torna-se parte do dia-a-dia das pessoas, vendável, portanto, e por isso interessante para o mercado, já que lucrativa. Sob qualquer ponto de vista são músicas desprovidas de conteúdo, de engenhosidade melódica ou de qualquer resquício de sofisticação e unicidade. Antes primam pelas obviedades e repetições e ainda assim, ou especialmente por causa disso, conseguem atrair e agradar quase a população inteira do país. Previamente estudada, essa população, que se sabe, é notória pela baixa escolaridade e pífio nível de informação, recebe, então o padrão que os produtores julgam atraente e compreensível a ela. Explode assim, a venda de cds de grupos menores como ‘Os Travessos’, ‘Falamansa’, ‘Calypso’ e afins, que se tornaram febre nacional.
Escritores de incontestável valor literário como Machado de Assis e Guimarães Rosa perdem fragorosamente na venda de livros para doublés como Paulo Coelho e Lair Ribeiro.
Estilos programados para agradar a uma população estudada, que os adotaria facilmente. Assim ocorre o fenômeno da massificação.
O imprevisível faz parte do show
Entretanto quando um produto cultural (ou não) não é capaz de massificar conforme o planejado, é prontamente substituído por outro, que possa cumprir mais eficazmente esse objetivo.
Num mundo em que o público está condicionado a sentir certas necessidades, a ter certos desejos e a sonhar certos sonhos, parece impossível errar a criação de produtos que adequadamente o atendam.
Mesmo assim, acontece que nem todo produto idealizado pela indústria cultural consegue de fato atingir o público como se propõe e indiferença e rejeição podem ocorrer. Para que se consiga um bom resultado, é preciso que o produto apresente traços evidentes e seguros de padronização, já que o que o público consumidor aspira hoje são os sonhos criados pela indústria cultural, ela mesma.
Esse é o indicador que sinaliza para o fim do sujeito, ou seja, do indivíduo que determina as características de sua própria ação. Embora, via publicidade, a indústria cultural trate o consumidor e se refira a ele como indivíduo, único, o grande sujeito, este é na verdade o sujeitado. O que predomina é a lógica da sociedade capitalista: a capacidade de lançar produtos em larga escala, que se mostrem desejáveis e se provem vendáveis, porque aptos a atender a todas as necessidades humanas, inclusive as inventadas pelo sistema.
As novidades em geral causam apreensão e temor nos produtores da indústria cultural. Eles se perguntam se aquilo que pretendem lançar pode ou não virar produto cultural consumível, palatável, enfim, padronizado. Se vai ‘falar’ com a massa, render dividendos, originar linhas de acessórios, de souvenirs, dar bilheteria, provocar factóides ou furor, uniformizar comportamentos.
Palavras de ordem da cultura de massas: simplificação, fragmentação, facilidade de assimilação
O humorístico ‘Muvuca’, estrelado pela comediante Regina Casé, na Rede Globo de televisão, é uma boa ilustração da confirmação de esses temores virarem realidade. Antes de ir para o ar, o programa era objeto de constante preocupação de seus produtores, que consideravam sofisticado demais o humor da atriz para o público ao qual se dirigia. Suposições corretas, o programa, que não conseguia dar o IBOPE necessário aos padrões da rede televisiva líder do Brasil, saiu da grade e congelou sua protagonista por tempo indeterminado.
O que é incapaz de gerar adesão ou comportamentos imitativos em curto espaço de tempo, no mundo da indústria cultural está fadado ao desaparecimento. Estratégias infalíveis para se fazer emplacar um produto são estudadas com afinco pelos dirigentes do sistema e elas se sofisticam cada dia mais. O Marketing se desdobra para configurar meios de se conseguir a decantada fidelização de clientes a produtos. Mantê-los cativos, comprando fielmente, é o sonho de qualquer anunciante. Tarefa inglória, já que a natureza humana pende muito mais para a infidelidade.
Admitido está, por exemplo, que uma forma de se obter alguma certeza sobre a aceitação de produtos pela sociedade é a combinação irresistível do novo com o velho. Vide entre inúmeros exemplos, o milionésimo lançamento de hits dos anos sessenta e setenta regravados nos moldes dos anos 90 e 2000. A maioria se torna tema de novela e emplaca com facilidade, uma vez associados à força da imagem e carisma dos atores, todos devidamente paramentados física e emocionalmente para ‘fazer a cabeça’ do público.
Remakes de filmes antológicos consagrados nas bilheterias, como ‘Psicose’, ‘Titanic’ e ‘Sabrina’, para citar apenas alguns, lotaram cinemas do mundo todo como se fossem inéditos. Há de se considerar, é claro, não a força dos enredos, mas a presença de astros e estrelas, que seduzem muito mais que as histórias. A garantia de sucesso é a roupagem nova emprestada às obras originais. A mini-série ‘Os Maias’, exibida recentemente pela Rede Globo de televisão carregou nas tintas com as cenas de sexo quase explícito para atrair espectadores, quando o livro de Eça de Queiroz nem de longe se utiliza desse recurso.
Oportuno seria perguntar diante disso: que tipo de visão de mundo está se disseminando através da indústria cultural? Um fatal esvaziamento nas mentes. A apologia da facilitação do entendimento.
A idéia de que a cultura de massas é uniforme e idêntica e de que tudo é analisado pelo prisma da utilidade, tem sua coerência fundamentada até mesmo pela atitude não mais disfarçada dos próprios dirigentes do sistema, que, por seu turno, não estão mais interessados em encobrir suas reais intenções, fazendo com que seu poder se fortaleça "quanto mais brutalmente ele se confessa em público" (Dialética do esclarecimento, pág. 114).
Em outras palavras, os que detêm o poder de idealizar e produzir peças tangíveis e intangíveis de forma padronizada para rápida absorção/consumo, o fazem sem encobrir seu intento. Não se discute mais ética.
A saturação também faz parte do show
Nas décadas de 80/90, nos Estados Unidos, filmes como ‘Rambo’, ‘Exterminador do futuro’ abusaram da violência e deram muito lucro aos seus produtores, porque era aquele um momento em que percebeu-se que o público queria ver isso: atores que pareciam blindados, empunhando armas grotescas, com ares de defensores do planeta.
Hoje esse expediente está superado. Novos rumos são buscados estudando-se cuidadosamente a pulsação da sociedade de agora. O que é que ela gostaria de ver? Parece ser a hora e a vez do politicamente correto no lugar da força bruta.
Os defensores e os acusadores da lógica da indústria cultural
Em sua defesa, o sistema que perpetua a lógica da indústria cultural tem na explicação tecnológica dos interessados o fato de que milhões de pessoas fazem parte dessa indústria e que, portanto, isso imporia métodos de reprodução que tornariam obrigatória a distribuição de bens produzidos em série para a satisfação de desejos e necessidades semelhantes.
Os padrões de produção seriam a grande resposta às necessidades desses consumidores, o que explicaria afinal, sua irrestrita aceitação e submissão.
Um adendo oportuno aqui é a interpretação de um outro autor, W. Benjamin, acerca dessa questão, que, embora também integrante da Escola de Frankfurt, não pensava a indústria cultural com os olhos negativos de Adorno e Horkheimer. Mesmo considerando seu aspecto manipulatório, ele enfatiza (na década de 30) que as técnicas de produção têm um lado bom: o potencial de democratização da cultura.
Adorno e Horkheimer, como já vimos, têm farta munição de argumentação em pólo oposto. Relembram que o imperialismo da técnica sobre a sociedade nada mais é do que fruto do poder dos mais fortes (os dominadores/produtores culturais/dirigentes do sistema) sobre os dominados (a sociedade em geral, alienada em si mesma). Os produtos industrializados e os meios de comunicação sustentam a coesão do todo. Seria a evidência da servidão da técnica ao sistema. A postura subserviente do público, que funciona como justificativa para a manutenção da indústria cultural, é, na verdade, parte integrante desse sistema frio.
Somada a isso está a meta dos donos do poder, que é a de cuidar ferrenhamente para que nada se produza sem antes se enquadrar às idéias que eles entendem fiéis ao perfil dos consumidores em potencial, às suas próprias planilhas, e, especificamente a eles mesmos, os diretores gerais dos setores mais poderosos da indústria, a saber: o do aço, do petróleo, da eletricidade e da química, diante dos quais, o monopólio cultural é tímido e nem um pouco auto-suficiente.
Os autores citam exemplarmente a ruinosa dependência da mais portentosa indústria radiofônica americana frente à indústria elétrica e a do cinema em relação aos bancos. Perigos a se salientar: rádio e cinema são meios capazes de influenciar decisivamente o pensamento humano; de formar opiniões; de disseminar ideologias.
Jogam por terra também as fervorosas distinções que se fazem entre os filmes A e B; entre as histórias publicadas em revistas de diferentes approachs e preços.
"O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre a mesma coisa" (Dialética do esclarecimento, pág. 116).
Diferenciações entre a mecânica e a cadeia de acessórios de automóveis da General Motors e da Chrysler, para citar um exemplo, são puro ilusionismo. As vantagens apregoadas funcionam como um motor para manter a sensação de vitalidade da concorrência e da sagrada chance de escolha/decisão de compra, essas, - chaves da publicidade -, uma das mais importantes ferramentas de sustentação da indústria cultural, que, por sua vez, a supervaloriza, já que depende inteiramente de sua atuação.
- Atendimento parcial de necessidades: geração de frustração e mais consumo.
- Atendimento total das necessidades: geração de relaxamento e desinteresse e nenhum consumo.
Enquanto que, para os detentores do poder os consumidores são reduzidos a simples material estatístico, para os publicitários, eles são reis; pelo menos são assim encarados e tratados pela publicidade, que cada vez mais enfatiza, por intermédio de imagens previamente estudadas, a associação do produto anunciado com o glamour, o sucesso, a sedução, o prazer, a virilidade, a beleza... Tudo é mostrado de forma que o consumidor tenha a sensação de estar sendo compreendido em seus desejos mais profundos, seus anseios não declarados, suas necessidades mais íntimas. Os autores frisam que nem mesmo os desejos, anseios e necessidades são legítimos no público consumidor. São, sim, fabricados, resultados da implacável manipulação que o sistema exerce sobre a sociedade.
A propaganda apenas expressa através de engenhoso jogo de palavras e imagens certeiras, que não há desejo ou necessidade que não possa ser “plenamente” satisfeito com o uso de um produto. Isso vale também para os ditos produtos culturais.
Só que o toque perverso disso tudo é que nunca os desejos são atendidos plenamente. A indústria cultural opera mediante uma só lógica de funcionamento: o esvaziamento do sentimento de tradição, de historicidade. Está voltada para um presente perpétuo, como se apenas valesse o que está acontecendo agora. Nada é feito para ser lembrado, reaproveitado, transferido, satisfatório, mas sim, para ser logo descartado, substituído, esquecido. Criam-se as tais “necessidades” que parecem possíveis de serem atendidas, mas nunca completamente, a fim de que outras surjam e possam ser novamente “entendidas e satisfeitas”, e assim, indefinidamente.
O telefone celular, quando inventado, propunha-se a satisfazer um específico tipo de necessidade: acabar com a dificuldade de comunicação dos habitantes da Finlândia. A Nokia resolveu o problema. Porém, como se pode ver hoje, o celular cada vez mais se desdobra para atender a “necessidades” que são surgindo sem parar. Diminuiu de tamanho, coloriu-se, tem parte com a Internet... Tudo muito necessário.
A verdade é que desejamos o mundo maravilhoso forjado pela indústria cultural porque ele foi estruturado para nos transmitir esse desejo, que, de tão bem elaborado, parece-nos real. De outra forma não seria tão sedutor e persuasivo.
Supervalorização do processo comunicacional: marca da sociedade moderna
Jean Baudrillard, nesse aspecto, é igualmente cético e apocalíptico. Diagnostica que os meios de comunicação, antes de mais nada, valorizam o espetáculo, o entretenimento, a presença ostensiva de imagens no lugar de palavras. O espetáculo precisa ser valorizado a fim de atrair cada vez mais as pessoas. O lado fastidioso disso é que destarte entramos em contato com um número tão enorme de imagens, que elas acabam por perder seu valor e a própria força de suas mensagens.
No fundo, para as massas, isso não parece importar, já que não estão voltadas para a absorção de profundos conteúdos.
Como Adorno e Horkheimer, que diziam temer que a sociedade acabasse em barbárie, Jean Baudrillard adverte que vivemos hoje um processo direcionado para o caos. Está em curso a desestruturação total da sociedade, que, ainda de acordo com ele, acabou-se, não funciona mais. Não sabemos mais quem somos, em quem acreditamos e em quem não acreditamos.
A realidade que vivemos perdeu sua espontaneidade. É construída o tempo todo pelos donos do poder. É fomentada uma série de relações para que mantenhamos essa pseudo-realidade, a qual aceitamos como se verdadeira fosse.
A própria arquitetura dos shopping centers, a disposição estratégica de produtos num supermercado, a programação da televisão, a publicidade... são nada mais que facetas da realidade programada para induzir comportamentos e atitudes que se coadunam com os não mais dissimulados objetivos dos poderosos.
A lógica auto-destrutiva
Baudrillard também alerta para o fato de que a imensa quantidade de estímulos provocou nossa total indiferença, nossa não-assimilação das mensagens. Quanto mais estímulos, menos efeitos. Não seria, acaso, proposital?
O excesso de informações e de imagens narcotiza, hipnotiza o indivíduo, não produzem apreensão, o que ocasiona o esvaziamento de sentido e dos próprios sentidos físicos. Exemplo: o ‘Programa do Ratinho’ (SBT) em sua estréia, pontificou como o pioneiro do rasgar das cortinas das mazelas do universo doméstico das classes baixas da população. Tapas em família eram a tônica do show diário. Novidade apreendida, chegara, então a hora de incrementar, inovar, apelar, até, antes que tudo caísse no marasmo da previsibilidade, o que, para a indústria cultural seria um golpe fatal.
Hoje, a apelação desceu a escadaria do suportável a passos largos, quando exibiu em pleno horário nobre a tortura impiedosa de uma garota de três anos por um ex-amigo de seu pai, sob as vistas complacentes da mãe, que dirigia o ato macabro em som audível, chegando a pedir que a menina facilitasse a surra. Tudo isso sob a desculpa de que televisão com Ratinho é mostrar o mundo como ele é. Violento e cruel. Só que para deixar isso claro, os produtores utilizaram-se da mesma arma, a própria violência para com a garota exposta aos olhos de milhões de brasileiros. Não é preciso ser inteligente para se entender que televisão com ou sem Ratinho é busca desesperada por audiência, para se equilibrar no horário custe o que custar.
"Pois onde pensamos que a informação produz sentido é o oposto que se verifica. (...) Em vez de fazer comunicar, esgota-se na encenação do sentido." (Simulacros e Simulação, pág. 104.)
A felicidade está no ar
Uma das idéias que o capitalismo acalenta é a de que a felicidade existe para todos, o que induz à criação de um homem universal/genérico. Sugere também que a felicidade e a ascensão social podem acontecer a qualquer um via sorte, não via talento. A hora certa, a ocasião certa, as pessoas certas e uma bem-vinda ajuda de Marketing pessoal podem catapultar alguém a uma vida regida pela ideologia capitalista.
Exemplos dessa idéia são as grandes estrelas da cena artística brasileira recente e atual, (Brasil: país onde a indústria cultural se estabeleceu recentemente, mas com força indômita dado o baixo nível cultural da população) Tiazinha , Feiticeira, brilhos de um dado momento temporal, e mais atrás, Xuxa, Angélica e Eliana, todas vindas das camadas populares da sociedade, e hoje milionárias e auto-suficientes. Cada uma à sua maneira encarnando pretensos sonhos, e desejos incontidos de determinados targets, lançaram-se confiantes de que representariam a realização dessas aspirações. Deu certo. Suas aparições nas telas de televisão brasileiras originaram factuais imitações comportamentais e, em alguns casos, como o de Xuxa, de gerações inteiras por anos a fio.
A fama e o sucesso que elas alcançaram, por outro lado, acabou se tornando alvo dos sonhos de milhares de garotas pobres que almejariam subir na vida pelos mesmos métodos. Enquanto não subiam, para alegria dos mestres da indústria cultural, consumiam avidamente posters, sandálias, álbuns de figurinhas e uma infinidade de produtos fabricados em série para “atender a essas prementes necessidades”, o que lhes dava a sensação indizível de serem semelhantes (ainda que isso as descaracterizasse) ou de estarem próximas de seus ídolos. Ao mesmo tempo, conferia aos produtores culturais a tranqüilidade de que esses produtos foram bem pensados, atenderam corretamente as necessidades desse público, eram, de uma vez por todas, a tacada certa.
As aparências não enganam
"O mundo tenta castigar
aqueles que não se conformam."
(Ralph Waldo Emerson)
É inequívoca a constatação de que vivemos um momento de decadência generalizada, facilmente observável em praticamente todos os aspectos da vida humana.
A pouca inventividade, o acomodamento, a tendência para a equalização, a imitação, a reprodução seriam traços que bem poderiam retratar o homem de hoje numa descrição feita por uma inteligência mediana.
Parece difícil encontrar uma saída para as pessoas reagirem à força da indústria cultural, especialmente num país como o Brasil, onde a Educação jamais foi prioridade governamental, mesmo quando tivemos por oito anos na Presidência da República um professor universitário.
Tem razão de sobra Jean Baudrillard, com seu característico tom pessimista, de dizer que a sociedade acabou e vivemos o fim de tudo.
Em seu celebrado O Sistema dos Objetos, o sociólogo derrama sua indignação ao referir-se causticamente a outro fenômeno de alienação, de acordo com ele, a Publicidade, como um braço forte e mantenedor da lógica do capitalismo selvagem, e, por conseguinte, da indústria cultural.
"Como a Publicidade é um fenômeno suplementar ao sistema dos objetos, não se poderia isolá-la, tampouco restringi-la à sua ‘justa’ medida (uma publicidade de informação estrita). Se ela se tornou uma dimensão irreversível desse sistema é na sua própria desproporção. É na sua desproporção que ela constitui seu coroamento ‘funcional’. A Publicidade constitui um mundo inútil, inessencial. Pura conotação." (Págs. 173, 174).
Curioso notar que ele chegou a essa dura conclusão vivendo num país culto e bem desenvolvido como a França, berço de pensadores e artistas imortais. O que passaria pela cabeça do velho Baudrillard, caso fosse ele brasileiro e convivesse com a realidade que temos por aqui? Que pensaria ele da programação televisiva deste país? Do perfil de nossos ídolos, dos formadores de opinião, todos eles gestados nesse ambiente tão pouco sério e sempre festivo? Do Carnaval que paralisa a nação, e agora dissemina-se ao longo de todo o ano em datas oficiosas pelas cidades do Norte e Nordeste?
É fácil pensar em caos vivendo no Brasil, cujo orgulho maior é o futebol. Pensar em caos olhando o Arco do Triunfo e as alamedas dos Champs Elysèes, deve ser um pouco mais difícil, mas, sem dúvida, possível. Só que parece injusto, até mesmo irreal. O caos daqui é muito mais caótico que o de lá. Nesse ponto conseguimos superá-los folgadamente. Aqui as novelas das oito, das sete e das seis são objeto de comentários sem fim, viram capa da Veja (revista que se presta a informar com seriedade). Lá, talvez nem fossem exibidas. O Maníaco do Parque, outrora tão espetaculosamente exibido pela mídia, e que recebe hoje propostas de casamento na cadeia onde está preso, teria tido essa bola toda por lá?
A força da indústria cultural se engrandece quanto mais inculta for a sociedade em que ela atua. E mais ainda quando essa sociedade tem como aparelho ideológico de Estado a mídia, o que faz com que decaia mais e mais o seu nível cultural.
Modismos tomam o lugar da verdadeira moda; fachadas substituem o que se poderia chamar de estilos. Mesmo que não queiramos ser atingidos pela indústria cultural, devemos nos lembrar de que ela é organizada como um sistema e sobrevive como tal.
Podemos nos recusar a assistir religiosamente uma novela barata da Globo, como a inacreditável ‘Uga-Uga’, cujo U.S.P. (Unique Selling Proposition) era a nudez masculina, (2001), ou a não menos infame ‘Um anjo caiu do céu’ (2002), ou a linguagem de sarjeta da ‘Bang Bang’ (2005 /2006)... Mas cedo ou tarde tropeçaremos na revista ‘Contigo’, quando formos comprar o jornal na banca e fatalmente nos depararemos com a capa dela gritando os grandes lances das “tramas”; também as vinhetas no rádio e na televisão nos avisarão o tempo todo da grande suspense que está no ar.
O zelador de nosso prédio, a manicure, a faxineira, nossos amigos e parentes comentarão ansiosos o último capítulo, e na próxima festa em família, o destino dos personagens centrais dominará todas as conversas, mais do que o mensalão ou o fato de o Brasil ostentar um pífio PIB de 2,3% / ano ou qualquer outro assunto de relevância maior.
Acabamos ficando, assim, mais íntimos dos personagens e até mesmo dos atores que os interpretam do que o somos de nossos parentes.
Praticamente impossível é escapar de um sistema organizado e pulsante que nos atropela a todo instante e é arquitetadamente forjado para isso. É a absorção conseguida na marra.
Adorno e Horkheimer asseveraram sabiamente que “quem resiste, só sobrevive integrando-se”. (Dialética do esclarecimento, pág. 123).
Temos uma relação de doentia dependência com produtos. Nosso lazer virou mero ato de consumo. No lugar de praças, shoppings centers. No lugar de estilo próprio, grifes da moda.
Vivemos sob a égide de inúmeras ditaduras veladas: a da magreza, a da loirice escandinava, a dos seios siliconados, a da momentosa lipoaspiração... Quem não se enquadrar nesses moldes está condenado ao ostracismo, será banido, não fará parte dos grupos da onda, virará um pária.
Muita plasticidade, pouca profundidade. Eis a regra áurea que faz multiplicar a venda de revistas como ‘Caras’, ‘Quem’, ‘Chiques & Famosos’; que ajuda a pensar que informação com fidelidade obtém-se no ‘Jornal Nacional’ e exemplo de vida é Carla Perez, que galgou a escadaria do sucesso através de seus próprios méritos.
Aos poucos, idéias mais desconcertantes e perigosas substituem as agora citadas. Embalada pela força da novela ‘Laços de Família’, (2003), ícone da cultura de massas, a concepção de que a prostituição é um caminho digno de se percorrer em busca de ascensão social tem adeptos em todo o país.
Nesse ponto é que se verifica uma crucial diferenciação entre o Brasil e o país natal de Jean Baudrillard. Na França esse episódio, se exibido, poderia quando muito virar tema de discussão sobre a hipocrisia humana. Aqui, é sugestão plausível de comportamento para moçoilas de cabeça vazia de todas as classes sociais, já que a atriz que representa a prostituta é bonita, veste-se bem e tem uns quatro galãs perdendo o sono por causa dela. O argumento de que ela se utiliza para justificar seu modo de vida é a “necessidade” que ela tem “como todo mundo”, de ter roupas de marca, carro do ano e conforto para morar. Coisas, que segundo ela, o trabalho honesto jamais lhe proporcionaria.
Também nessa mesma novela, cujo título é uma clara antítese em relação a seu enredo, tenta-se fazer com que pareça corriqueiro e aceitável o fato de mãe e filha terem um tórrido caso de amor com o mesmo homem. Enquanto o IBOPE se mantém, descalabros como esses também se mantêm.
Se o IBOPE cair, é possível que todos se transformem em santos piedosos a fim de recambiar a audiência perdida, mesmo sob pena de que isso destroce o sentido e a lógica que orientariam o enredo da história.
Um jogo de cartas marcadas onde só há perdedores. Nada se ganha intelectualmente produzindo para a indústria cultural. Menos ainda consumindo-se essa produção.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. – Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.
BAUDRILLARD, J. – O Sistema dos Objetos. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2ª edição, 1989.
_______________- Simulacros e Simulação. Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1991.
DÈBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Lisboa, Edições Mobilis in Móbile, 1991.
ROCHA, E.P.G. – Magia do Capitalismo. São Paulo, Ed. Brasiliense, 3ª. edição, 1995.
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