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Os sentidos da 'mudança' na campanha eleitoral de 2002
Dec 18, 2005
A eleição é, no sistema presidencialista de voto direto, o momento máximo do exercício democrático e a mídia exerce papel fundamental nesse cenário. A prática do marketing político moderno, caracterizado por entender o que os eleitores querem e posicionar o candidato de acordo com os anseios e frustrações da população, coloca a propaganda eleitoral como meio de comunicação privilegiado, no papel de interlocutor entre candidatos e eleitores. O ápice é o horário gratuito de propaganda eleitoral no rádio e na televisão.
Sua função primeira, segundo Luciana Veiga (s/d), é mobilizar o eleitor para a disputa: é por meio dele que as pessoas despertam para a “hora da política”. Em segundo lugar está sua função de prover o eleitor de informações seguras para que possa decidir o voto, ainda que perceba que o horário eleitoral é isento de imparcialidade. Entretanto, é ali que o eleitor vai buscar informações: conhecer melhor os candidatos a fim de diminuir a incerteza que caracteriza a decisão eleitoral. Ao lado da satisfação dessa demanda cognitiva, outra demanda que se vê atendida pelos espectadores do horário eleitoral diz respeito à necessidade de segurança e estabilidade emocional, pelo incremento da credibilidade em relação aos candidatos, obtido com o conhecimento adquirido e maior compreensão do cenário. Uma terceira demanda, segundo a autora, é atendida pelo horário gratuito: a demanda de reforços da experiência estética e emotiva. A beleza e emoção dos programas têm efeito persuasivo, uma vez que ativam e retêm sua atenção, deixando-o mais receptivo e menos crítico às mensagens. A propaganda eleitoral, portanto, é a maior referência para o eleitor decidir o seu voto.
A televisão atinge todas as camadas sociais e a propaganda eleitoral televisiva pode ser considerada a forma mais eficiente de os candidatos e partidos levarem suas mensagens aos “públicos” em geral. Ao lado do papel informativo, esclarecedor, a propaganda busca persuadir/seduzir não apenas por meio de suas mensagens objetivas (plataformas ou programas políticos), mas sobretudo pela “imagem” que se deseja que o eleitor construa sobre os diversos concorrentes. E isso se dá por meio do somatório de diferentes linguagens: verbal, gestual, sonora e imagética.
Por seu caráter sincrético, a televisão é, portanto, o meio por excelência para a publicidade ou propaganda eleitoral, ao hibridizar várias linguagens, além da verbal (oral ou não). Desta maneira, este estudo se propôs a analisar não apenas o aspecto lingüístico das mensagens dos candidatos, mas sim observar qual imagem cada candidato tentou passar de si e como o fez para atingir este objetivo.
O primeiro turno
Seis candidatos concorreram oficialmente à Presidência da República no pleito de 2002. Segundo legislação eleitoral em vigor, o horário eleitoral na televisão começou em 20 de agosto e se estendeu até 3 de outubro. Os programas foram veiculados às terças, quintas e sábados, com duas inserções de 25 minutos de duração (das 13h às 13h25 e das 20h30 às 20h55) e mais 10 minutos de inserções ao longo da programação, totalizando 60 minutos diários. O tempo de cada candidato foi o seguinte: José Serra: 10 minutos e 23 segundos; Luiz Inácio Lula da Silva: 5 minutos 19 segundos; Ciro Gomes: 4 minutos e 17 segundos; Anthony Garotinho: 2 minutos e 13 segundos; José Maria: 1 minuto e 23 segundos; Rui Costa Pimenta: 1 minuto e 23 segundos.
Ao longo dos 20 programas eleitorais, os candidatos tentaram construir uma imagem própria junto aos eleitores: o que pretendiam fazer se eleitos, bem como sua competência e caráter para tanto. Mas não foram só as propostas e as biografias dos candidatos que os programas de televisão abordaram. Mais do que assertivos quanto às suas próprias imagens, a propaganda eleitoral dos candidatos procurou, também, prejudicar a imagem de seus adversários. E quando houve ataques que arranhavam a imagem objetivada, muito tempo de televisão foi usado para se defender.
Tendo em vista que os discursos dos candidatos à eleição inserem-se na tipologia do discurso “político” e utiliza-se do gênero “propaganda eleitoral televisiva” para persuadir o eleitor, a sociossemiótica apresentou-se como ferramenta para sua análise, por permitir a apreensão do seu modo de existência e produção; de suas estruturas de poder específicas; dos processos de argumentação, veridicção, persuasão, sedução e manipulação utilizados; dos valores socioculturais em pauta; das relações interdiscursivas com outros discursos sociais; enfim, para compreensão do seu impacto no mundo atual. Afinal, a visão de mundo de uma sociedade é construída – e permanentemente reconstruída – no discurso. A propaganda eleitoral televisiva, portanto, foi examinada como um “espetáculo semiótico sincrético”, como Pais define (1978).
No nível fundamental identificam-se as oposições semânticas a partir das quais se constrói o sentido do texto. Estas categorias fundamentais são determinadas como positivas ou eufóricas e negativas ou disfóricas. No caso da propaganda eleitoral televisiva dos candidatos, pode-se depreender que a oposição fundamental foi entre mudança e continuidade. Todos, sem exceção, colocaram-se como potenciais realizadores da mudança que acreditavam ser tão desejada pelo povo. Os candidatos Garotinho, Lula, Ciro e Serra se apresentaram como sujeitos com competência para uma performance de aquisição do objeto de valor mudança. Já para os candidatos do PSTU e PCO, a mudança viria com o partido fortalecido.
Toda a campanha eleitoral foi focada na tentativa de os candidatos/partidos passarem a imagem de que eram os portadores da mudança. Entretanto, no discurso de seus adversários, o que se verificou foi a tentativa de associar cada candidato a outro(s) valor(es) de caráter disfórico:
- Serra: candidato da continuidade e não da mudança, por ser do governo vigente
- Lula: mudança sem experiência, aventura, perigo
- Garotinho: populista, prometia mas sem dizer como
- Ciro: destemperado, irritadiço, mentiroso, desrespeitoso com as mulheres
Os candidatos do PSTU e do PCO sequer foram mencionados na propaganda dos quatro primeiros colocados, pois não representavam “perigo” às suas candidaturas. Para os dois, entretanto, todos os demais candidatos representavam a continuidade. Apenas eles, pelo fato de se oporem ao sistema econômico vigente, seriam os portadores da mudança.
Estruturas de poder
Em termos de estruturas de poder, tem-se que o sujeito do fazer é o mesmo que o destinador da manipulação: a propaganda. A ela cabe doar uma competência ao sujeito de estado (espectador/eleitor), para que este siga seu programa narrativo até obter o objeto de valor principal: o melhor governo. Há, da parte do sujeito de estado e destinatário (espectador/eleitor) a crença na capacidade de a propaganda oferecer a competência do saber. Conclui-se daí que o discurso publicitário caracteriza-se pela modalidade complexa de poder-fazer-saber.
Entretanto, segundo Pais, a principal razão de ser do discurso publicitário é o poder de fazer querer:
Trata-se, aqui, do poder de fazer com que o consumidor queira consumir. Ao comprar tal ou qual produto, ele se julgará estar fazendo o que quer; não tem consciência, as mais das vezes, que esse seu querer não pré-existia ao discurso publicitário e foi por ele gerado. O saber, nesse caso, é sobremodalizado pelo querer do emissor – o agente publicitário e o cliente que representa – que visa a despertar o querer fazer (comprar) do receptor, o consumidor potencial. (Ibidem: 45).
Parafraseando Pais, podemos dizer que a propaganda eleitoral, assim como a publicidade, caracteriza-se por um poder-fazer-saber, para um poder-fazer-querer que, no caso, se traduz em “votar”, ao invés de “comprar”.
Segundo categorização de Pais, é esse poder de fazer-saber para poder fazer-querer que caracteriza o discurso publicitário. Mas, ainda que se possa considerar a propaganda eleitoral como uma peça publicitária (o que se enquadraria na categoria de gênero), esta tem como referente um outro discurso: o político. E nesse ponto a propaganda eleitoral se encontra com o discurso político, que também é definido pela modalidade complexa poder-fazer-querer.
Para Pais, “o discurso político não se limita a uma interpretação da vontade geral e das aspirações de segmentos significativos da sociedade – de que resulta a primeira – mas constitui-se no lugar semiótico em que estas e aquelas são produzidas. Podemos dizer, pois, que o discurso político tem o poder de gerar um querer-fazer” (Ibidem: 44).
Tanto o discurso político como o publicitário – espaço onde ocorre a propaganda eleitoral – detêm um poder de persuasão. Desta maneira, pode-se afirmar que na propaganda política há uma sobremodalização do discurso publicitário sobre o discurso político, caracterizado pela modalidade complexa poder-fazer-saber para poder-fazer-querer.
É essa sobremodalização que viabiliza um raciocínio silogístico, levando o receptor da mensagem a um saber que “o candidato X fará a mudança” e, conseqüentemente, a um querer-fazer que se traduzirá no voto. Essa combinação de modalidades complexas, segundo Pais, compreendem planos múltiplos de significado, tendendo, portanto à pluri-isotopia e, por isso, admitindo várias leituras. Para o autor, essa polissemia, “longe de ser fonte de ruído, consolida e amplia o poder do discurso” (ibidem: 45). É nisso que consiste o poder de persuasão da propaganda política: é um discurso que persuade a respeito de um saber e de um querer, pois este querer só será satisfeito se o destinatário tiver uma performance: um fazer que se traduz em votar. Dessa maneira, ainda que o destinatário tenha a sensação de estar fazendo o que quer ao votar no candidato X ou Y, ele desconhece que esse seu querer não existia antes do discurso e que foi gerado por ele.
A propaganda eleitoral, portanto, ao sobremodalizar os discursos político e publicitário, acaba por persuadir mais do que cada um desses discursos de modo isolado: persuade a respeito de um saber, de um fazer, de um querer e de um dever. Acreditamos, portanto, que a eficácia da propaganda eleitoral deva-se a essa sobremodalização discursiva.
Os tipos de manipulação
Um outro aspecto que merece ser abordado é o tipo de manipulação os candidatos utilizaram em sua propaganda televisiva. Uma primeira tipologia das figuras de manipulação foi desenvolvida por Greimas (Greimas & Courtés, 1979), estabelecendo quatro tipos de manipulação: a provocação, a sedução, a tentação e a intimidação.
Na sedução e na provocação, o destinador tenta persuadir ao apresentar uma imagem do destinatário. Em se tratando de imagem positiva (lisonjeira), o destinatário pode confirmá-la e aceitar a manipulação, o que caracteriza a sedução. O que caracteriza a provocação é o fato de o destinador apresentar uma imagem negativa do destinatário, e este, para refutá-la, ter de fazer o que o destinador pretende. Na tentação e na intimidação, a manipulação se dá pelo poder do destinador oferecer uma recompensa (valor descritivo positivo) ou ameaça/punição (valor descritivo negativo).
Os candidatos utilizaram em sua propaganda eleitoral televisiva diferentes formas de manipulação do destinador (espectador/eleitor). Em primeiro lugar, todos tentaram seduzir, mostrando que o eleitor era importante para eles. Ao mesmo tempo, tentaram o eleitor, oferecendo um valor positivo: a mudança. Cada um dos quatro principais concorrentes tentou mostrar-se como portador de uma competência para realizar a mudança - recompensa desejada pelo eleitor. Os outros dois não se manifestaram a respeito.
Alguns candidatos, entretanto, também recorreram à intimidação, do tipo: “se você votar em X (seu adversário), terá tal problema”. A intimidação foi utilizada quando os candidatos se referiam a seus oponentes, nos freqüentes ataques – estratégica não utilizada apenas pelo candidato Lula. Todos os outros candidatos – Serra, Ciro, Garotinho, Zé Maria e Rui Pimenta – lançaram mão da intimidação em seus discursos. Ou seja, se votassem em outro candidato que não o destinador da mensagem iriam sofrer conseqüências ruins.
A provocação, ou seja, a utilização de uma imagem desfavorável do destinatário para forçá-lo a provar o contrário, foi o único tipo de manipulação não adotado de modo direto. Nenhum candidato ousou desqualificar seu eleitor, para obter seu voto. Entretanto, a provocação se fez de modo subentendido: ao criticarem seus adversários, os candidatos davam a entender que, se o espectador/eleitor acreditasse e votasse neles, este seria “abestado”, “ignorante” ou “não patriótico”.
Os diferentes sentidos do mesmo objeto de valor
O objeto de valor oferecido pelo destinador (propaganda dos candidatos) ao destinatário (espectador/eleitor) foi o mesmo: a mudança. Interessante observar, entretanto, que em termos discursivos, esse objeto de valor adquiriu diferentes sentidos na campanha de cada candidato.
Em termos de sintaxe discursiva, temos diferentes enunciadores. Na propaganda de Lula, o enunciador foi “nós”. Na de Serra, Ciro e Garotinho, foi sempre o “eu”. Já na de Zé Maria e Rui Pimenta, foi “ele”, o partido, pois mesmo quando utilizado o “nós”, tratava-se de um “nós, membros do partido”. Com relação ao enunciatário, a campanha de Lula também se dirigiu a “nós”. As dos cinco demais candidatos utilizaram tanto o “tu” (você, eleitor) como o “ele” (o povo, o trabalhador). O uso de diferentes procedimentos de actorialização gerou sentidos próprios: Lula construiu um sincretismo entre enunciador e enunciatário – do tipo “nós/nós” – com identificação entre os dois atores. O efeito oposto é gerado nas relações “eu/tu”, “eu/ele” ou “ele/ele”, que caracterizaram os discursos dos demais candidatos.
O que se pode daí depreender é que a propaganda de Garotinho, Ciro e Serra coloca como condição para mudança a própria ação do candidato enquanto presidente. Em todas, caberá ao presidente doar, realizar algo para o povo, o que é evidenciado pelas afirmações de que será o candidato que irá fazer isso ou aquilo, ou mesmo pelo peso dado à sua pessoa como grande responsável pela mudança (foco no seu currículo e nas suas realizações passadas e nas promessas futuras). Foram campanhas focadas no “eu” ou no “nós” majestático. Ao povo, só caberia a decisão de escolher em quem votar.
Enquanto isso, a campanha de Lula foi focada no “nós” (não majestático, mas o inclusivo do destinatário). Ao povo, caberia mais do que a escolha passiva de um governante, de quem receberia tudo, mas a participação da decisão do seu próprio destino. Desde o slogan “Quero Lula presidente”, até os bordões “Se você não muda, o Brasil não muda”, que atribui peso fundamental no papel do destinatário espectador/eleitor.
Tem-se, dessa maneira, uma segunda oposição semântica, subtendida no nível discursivo: enquanto para Ciro, Serra e Garotinho a participação do povo na política é tratada como algo passivo (espectador mais ou menos marginal), na campanha de Lula ela é ativa (protagonista). Evidentemente, estamos a tratar apenas dos efeitos de sentido que as campanhas pretendiam gerar. De fato, aos sentimentos de maior ou menor participação política não se pode associar necessariamente uma ação mais ou menos participativa. O que importou, no caso da propaganda eleitoral, foi o efeito de sentido em termos de participação política produzido nos destinatários.
Parece-nos que nesse sentido a propaganda de Lula foi a mais eficaz, ao captar um sentimento ou um objeto de valor positivo: a participação política – não abordado por seus adversários. Talvez seja este um dos aspectos que tenha favorecido a vitória de Lula no primeiro turno com 39.454.692 votos – 46,4% do total – teve a ver com esta opção do destinatário por uma maior participação nos rumos da política. Os votos obtidos pelos outros candidatos subseqüentes foi muito inferior à de Lula: Serra ficou em segundo lugar, com 19.705.061 votos (23,2% do total); Garotinho, em terceiro, com 15.179.879 votos (17,9%); e Ciro em quarto, com 10.170.666 votos (12%). Zé Maria teve 402.232 votos (0,47%) e Rui Pimenta, 38.619 (0,05%).
Já nos programas de Zé Maria e Rui Pimenta, houve uma valorização do partido e não do candidato. Isso vem ao encontro da própria proposta de seus partidos – o PSTU e o PCO – de serem uma organização de massa, para quem até mesmo o momento eleitoral e a conquista de cadeira não constituem seu objetivo principal, a gestão da sociedade, diferentemente dos partidos eleitorais de massa (ou também conhecidos como “pega-tudo”), conforme define Bobbio (2000).
Independentemente do fato de a propaganda encerrar um sentido, mais do que um fato político, o que importa é a verificação de que a participação política foi um objeto de valor utilizado para persuasão/sedução do destinatário espectador/eleitor.
O semi-simbolismo na propaganda eleitoral
Segundo Flöch, a semiótica distingue três grandes tipos de linguagens segundo a relação entre o plano da expressão e o plano do conteúdo. Inicialmente, distinguem-se os sistemas simbólicos e os sistemas semióticos propriamente ditos.
Os sistemas simbólicos são as linguagens cujos dois planos estão em conformidade total: a cada elemento da expressão corresponde um – e somente um – elemento do conteúdo, a tal ponto que não é mais produtivo para a análise distinguir ainda o plano da expressão e o plano do conteúdo, visto que têm a mesma forma (Flöch, 2001: 28).
No sistema semiótico, desaparece a “conformidade entre os dois planos, nas quais é preciso distinguir e estudar separadamente expressão e conteúdo” (Ibidem: 29). Já o terceiro tipo de linguagem, encaixa-se entre os dois primeiros: são os sistemas semi-simbólicos, que se definem pela conformidade não entre os elementos isolados dos dois planos, mas entre categorias da expressão e categorias do conteúdo.
Dessa perspectiva, pode-se afirmar que os recursos de áudio e vídeo dos programas eleitorais tiveram o papel de exercer um semi-simbolismo, de modo a referendar o discurso lingüístico. Ou seja, a mensagem da mudança não se restringiu apenas às palavras dos candidatos. Procurou-se relacionar o sentido de mudança ao rápido movimento das imagens.
Pela definição lexical, mudança significa “deslocamento”, “movimento”, “ação”. Todos os candidatos utilizaram-se do recurso do videoclipe, em que várias imagens vão se sobrepondo, ao ritmo da música. Lula, por exemplo, utilizou o recurso de wide-screen (gravação em película cinematográfica e não em vídeo) apenas nos curtas que figurativizavam a temática em pauta, diferenciando-os do restante do programa, estruturado em forma jornalística. Este recurso, aliado ao da sonoplastia (música), garantiu grande força a seus curtas de caráter emocional, presentes em todos programas. A agilidade verificada nos programas de Lula (cenas curtas, fusões de várias imagens, inserção de GC para reforço da locução verbal durante a apresentação das propostas etc.) veio não apenas reforçar, mas também “confirmar” a mensagem verbal de que o candidato se identificava com a mudança. Além disso, todo o programa, por mais triste que fosse o tema retratado, terminava com imagens e músicas em “alto-astral”, reforçando a mensagem de que ele seria o candidato da esperança. A estrutura do programa o comprovava.
Os demais candidatos também utilizaram recursos de videoclipe. Garotinho o fez praticamente em todos os programas. Toda a locução em off era coberta por uma profusão de imagens positivas: pessoas felizes em movimento. A propaganda de Ciro, entretanto, valeu-se mais de imagens dramáticas, com apelo emocional para cenas tristes. Não mostrou muitas imagens positivas (que possivelmente semi-simbolizariam a alegria que o destinatário esperava).
Já o programa de Serra, ainda que contasse com excelentes recursos técnicos, pareceu monótono, talvez devido à longa duração (mais de 10 minutos). O candidato sempre apareceu em estúdio. As imagens externas eram só para cobertura de locução. Ele falou muito mais tempo em vivo, sempre parado, com um cenário estático, do que esteve em movimento, visitando locais e prometendo mudanças in loco. Os blocos temáticos de seus programas eram extremamente longos, se comparados aos blocos de programas jornalísticos. Pareceu ser um candidato de gabinete. O tom de voz monocórdio e a gestualidade do candidato (poucos movimentos) também contribuíram para reforçar a imagem de estagnação. Ou seja, semi-simbolicamente, as imagens, os gestos, o ritmo da edição demostraram paralisia, o que negou Serra como o homem que faria a mudança, apregoada por seu discurso verbal.
Assim, na campanha eleitoral televisiva, a expressão produziu sentido, ao concretizar sensorialmente os temas abstratos abordados, ao mesmo tempo em que fabricou efeitos de realidade, permitindo uma nova leitura e entendimento do mundo. Como bem Flöch afirma: “muitos dos êxitos do discurso publicitário têm por fundamento semiótico a motivação dos signos que produz essa semi-simbolização” (Ibidem: 29). Parece ser este o caso da campanha presidencial do Brasil: a função estética – ainda que não seja um fim – foi instrumento de realização do discurso político.
O segundo turno
Terminado o primeiro turno, que definiu Lula e Serra como candidatos que disputariam o segundo turno, uma nova campanha começou. Durante 12 dias consecutivos, os dois candidatos tiveram igual espaço no horário eleitoral gratuito, entre os dias 14 e 25 de outubro. Foram doze programas com dez minutos de duração cada um.
Os doze programas de Lula tiveram como marca maior o espírito festivo e otimista. Tanto a abertura dos programas quanto seu fechamento, foram em clima de festa e com mensagens de esperança. Seu programa buscou passar uma imagem de que o eventual governo de Lula seria de coalizão, de união de todos os brasileiros, não apenas resultado da ação do presidente; que teria inúmeros apoios, como o dos antigos adversários Ciro e Garotinho.
Às críticas de Serra, Lula dedicou pequenos trechos de seus programas. Para justificar a ausência nos debates, o locutor apareceu nos dias 14 e 15. No dia 21, veiculou programa que se auto-intitulou como debate com jornalistas, na TV Bandeirantes. No dia 16, apresentou o depoimento de Paloma Duarte, em resposta ao de Regina Duarte, que dizia ter medo do governo Lula e da volta da inflação. No dia 18, respondeu aos ataques quanto à saída da Ford do Rio Grande do Sul. Especificamente sobre as críticas de Serra, veiculou a pergunta: “Se ele sabe como fazer, por que ainda não fez?” nos programas dos dias 20, 21, 22 e 13. Em nenhuma vez, o candidato apareceu se defendendo ou atacando seu adversário diretamente.
As imagens de Lula só foram utilizadas para referendar suas proposições com relação à criação de empregos (especialmente o projeto Primeiro Emprego), educação, dívida externa, produção. Em todos os momentos, o candidato, assim como no primeiro turno, manteve o discurso do “nós”. Chegou a verbalizar que sozinho não faria nada: “Essa mudança não é obra de um homem só, mas de todo um país” (20 de outubro). Para obter tal efeito, todo o discurso foi de um enunciador “nós” para um enunciatário também “nós”. O efeito, como no primeiro turno, foi o de sincretismo entre ambos, o que gerou identificação. O ponto forte dos programas de Lula foi o tom emocional, caracterizado por curtas, jingles, músicas e clipes. O candidato apareceu em estúdio, mas sempre com imagens em movimento. Mostrou-se, ainda, em interação com o eleitor, ao submeter-se a responder questões do “povo”. Pode-se concluir, assim, que a campanha de Lula no segundo turno manteve o mesmo caráter que no primeiro, com forte ênfase na emoção: a “mudança” seria de todos e significava esperança.
Serra, ao longo do segundo turno, dedicou nada menos que todos os doze programas a fazer críticas ao adversário, ainda que nos dias 23 e 25 estas serem citadas apenas no jingle “a onde é verde e amarela, ela não é vermelha”. O objeto de valor “mudança” mudou de cor: no primeiro turno era azul, como a carteira de trabalho; no segundo turno, passou a ser verde e amarela, cores da bandeira do Brasil, em oposição ao vermelho, do adversário.
Grande parte dos programas foi dedicada à desqualificação do adversário, que seria sinônimo de mudança com “risco”, ao mesmo tempo em que tentou vincular a imagem de Serra à competência. O novo bordão do segundo turno foi “Serra: mudança com competência”. Seu programa repetiu as promessas do primeiro turno e buscou demonstrar que o candidato contava com apoios de políticos, religiosos, prefeitos. O maior apelo foi de ordem racional: a escolha do eleitor deveria se dar pela comparação entre os dois candidatos e que ele não deveria se deixar enganar pela sedução que a propaganda de Lula apresentava. O único programa em que enfatizou o tom emocional foi no último, dia 25, em que convocou o espectador a dar uma “virada aos 45 minutos do segundo tempo”. Nos demais, as mensagens visaram sensibilizar pelo uso de informações “confiáveis”, como jornais, revistas e pesquisas de opinião, além de depoimentos, que demonstravam que o discurso do adversário não era confiável. O enunciador, assim como na campanha do primeiro turno, foi o “eu”. Em todos os momentos, o programa tucano dirigiu-se a um “tu” (“você, brasileiro”) ou a um “ele” (o povo). Aqui, também, o efeito criado deve ter sido de distanciamento. Serra apareceu sempre em estúdio ou em imagens de comícios; jamais discursou em ambientes externos.
Em termos de estrutura fundamental, os programas veiculados no segundo turno também tiveram a mudança como valor eufórico e a “continuidade” como disfórico. Lula e Serra se colocaram como sujeitos com competência para tal performance. Entretanto, o valor mudança adquiriu diferentes significados.
Para Lula, a mudança não seria obra dele sozinho. Seria fruto da união, da esperança e do otimismo de cada destinatário. Serra seria o candidato da continuidade.
Para Serra, entretanto, a mudança seria feita apenas por alguém com a competência dele próprio e não com o adversário, que representava, segundo ele, dúvida e medo e, portanto, incompetência.
Assim, pode-se concluir que o discurso de Lula em oposição ao de Serra confrontaram os sentidos de emoção e razão. No campo da emoção, a mensagem gerou um querer e no campo da razão, um dever. Ou seja, a propaganda de Lula trabalhou o nível de desejo do destinatário da mensagem, que podia sentir-se “livre” para escolher qual futuro desejaria para o país (sempre figurativizado de forma positiva: imagens, histórias, depoimentos de pessoas que acreditavam e confiavam no amanhã). Mais uma vez, foi valorizada a participação política, ou melhor, o sentido de que haveria participação, como estratégia de manipulação.
Em contraposição, a campanha de Serra apelou à razão: o eleitor deveria escolhê-lo por medo, contra o risco de Lula ganhar, o que foi figurativizado pelas intensas críticas que o programa veiculou.
Em termos de tipos de manipulação, a campanha de Lula focou-se basicamente na sedução (o destinador teria competência para “mudar” o Brasil) e na tentação (era oferecido um valor positivo como recompensa: “um Brasil feliz”). Ainda que recorresse à provocação e à intimidação, como no primeiro turno, estes não foram os recursos manipuladores fundamentais da campanha de Lula.
Já na campanha de Serra, trabalhou-se muito mais a intimidação, ou seja, haveria punição ao eleitor, caso votasse no adversário. Foi dedicado muito mais tempo a persuadir o eleitor dos riscos da Presidência com Lula, do que das vantagens da Presidência com Serra. Ao intimidar, a campanha de Serra também usou da provocação: ao “informar” – com depoimentos e matérias jornalísticas – dava a entender que passava uma verdade que o eleitor, até então, desconhecia. A tentação, ou seja, o oferecimento de valores positivos, como a mudança, foi pouco usada na campanha de Serra.
Foram, portanto, diferentes as estratégias de geração de sentidos que, acreditamos, tiveram papel fundamental na sedução/persuasão do eleitor e nos resultados das urnas.
Em termos de semi-simbolismo, as duas campanhas também diferiram e foram marcadas pelas mesmas características apontadas no primeiro turno. Os recursos de vídeo e áudio referendaram o discurso lingüístico: os programas de Lula tiveram maior velocidade do que os de Serra. Lula, mesmo quando parado em frente à câmera, estava num cenário em movimento. Já Serra apareceu apenas em estúdio, com um fundo estático. Outro aspecto que deve ter provocado certa falta de credibilidade à campanha de Serra foi o fato de trocar a cor da “mudança”: no primeiro turno ela era azul (como a cor da carteira de trabalho); já no segundo turno, ela passou a ser verde e amarela (como a bandeira brasileira). Essa mudança de apelo pode ter gerado uma “quebra” no contrato fiduciário entre destinador e destinatário, que se sentiu, provavelmente, “traído” pela troca.
À guisa de conclusão
Ainda que a análise empreendida não tenha abrangido todos os enfoques que a semiótica pode permitir, consideramos que a abordagem adotada permitiu compreender como se deu a produção de sentidos das campanhas eleitorais dos candidatos. Percebemos que a mudança foi o objeto de valor que a propaganda de todos candidatos tentaram passar. Entretanto, no primeiro turno, para os candidatos do PCO e do PSTU, esta caberia ao partido realizar. Para Ciro, Serra e Garotinho, seriam eles próprios os agentes da mudança. Cabe aqui destacar o paradoxo da posição do candidato governista, José Serra, como sendo portador de um sentido de mudança.
Já para Lula, seríamos “nós”, incluindo destinador e destinatário da mensagem, os realizadores da performance do programa narrativo que tinha como programa principal votar no melhor candidato para realizar as modificações necessárias ao país. Depreendeu-se, daí, um sentido de participação política, que foi trabalhado de modo diferenciado pelos candidatos.
O modelo proposto pela semiótica mostrou-se profícuo ao permitir evidenciar os tipos de manipulação utilizados pelos candidatos, bem como os sentidos diversos para o mesmo objeto de valor mudança, cujos significados estavam relacionados à postura de maior ou menor participação política. A tentativa preliminar de modelagem do universo do discurso da participação política foi também um avanço que a teoria permitiu, de modo a contribuir para um maior conhecimento sobre a visão de mundo e os valores axiológicos prevalentes na sociedade brasileira no início do século XXI.
Outra contribuição fundamental que o referencial teórico possibilitou foi a percepção da importância do plano de expressão nos programas eleitorais, ao provar que as imagens e sons não são apêndices ou ilustrações da mensagem verbal, mas que geram efeito de sentido, dando um caráter de maior ou menor verossimilhança às asserções.
Já no segundo turno, pudemos verificar que a oposição fundamental se deu entre o querer gerado pela emoção em contraposição a um dever gerado pela razão. Foram esses os principais efeitos de sentido gerados, respectivamente, pelas campanhas de Lula e Serra.
Tudo isso nos leva a melhor compreender que a propaganda eleitoral, ou seja, o discurso publicitário, sobremodaliza o discurso político, ao transformar a política num espetáculo semiótico sincrético, em que diferentes discursos integram o político. Neste, a função estética adquire um papel predominante, não só como ferramenta para geração de sentido, mas, sobretudo, como designadora do próprio sentido que se pretendia passar. Tanto o querer como o dever só foram provocados pelo discurso publicitário, pela forma que este deu às propostas políticas, fossem elas de caráter ideológico, como no caso dos programas do PCO e do PSTU, fossem elas de caráter meramente pragmático (emprego, saúde, educação etc.), sem discutir, de fato, a sociedade em que vivemos. As propostas foram, portanto, meros pretextos “enformados” para persuadir/seduzir o (e)leitor.
Referências bibliográficas
BOBBIO, Norberto & MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução: Carmen C. Varieli [et al.]; 5ª edição. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
FLÖCH, Jean-Marie. “Alguns conceitos fundamentais em semiótica geral”, In: Documentos de Estudo do Centro de Pesquisas Sociossemióticas. Vol. 1. São Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2001.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cutrix, 1979.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2002.
PAIS, Cidmar Teodoro. “Estruturas de poder dos discursos: elementos para uma abordagem sociossemiótica”. In: Língua e Literatura, nº 7. São Paulo: FFLCH-USP, 1978.
VEIGA, Luciana Fernandes. Artigos “Marketing político e decisão do voto: como agem os eleitores diante das propagandas eleitorais” e “O eleitor diante do horário eleitoral”, sem data de publicação, disponíveis no site: www.iuperj.br.
Trabalho apresentado ao NP 03 – Publicidade, Propaganda e Marketing no IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, durante o XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado na PUC-RS, em Porto Alegre (RS), no período de 30 de agosto a 3 setembro de 2004.
Katia Saisi é jornalista formada pela PUC/SP, pós-graduada em Comunicação e Marketing e mestre em Comunicação e Mercado pela Faculdade Cásper Líbero (SP), é docente no curso de graduação em Comunicação Social na Universidade Anhembi Morumbi e no de especialização em Comunicação Política e Marketing Eleitoral da ECA-USP. É diretora executiva da Pluricom Comunicação Integrada e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP.
Contato: [email protected]