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PRODUTOS DO BEM<br> Uma reflexão crítica da espetacularização das questões sociais
Apr 26, 2006
Em instigante análise do Terceiro Setor, Vander de Castro propõe uma abordagem crítica ao atual e predominante modelo de intervenção do setor empresarial nas questões sociais.
No Brasil, as mudanças ocorridas e em processo, referentes à perda de direitos de cidadania por serviços e políticas sociais, assistenciais e por uma seguridade social estatal, universais e de qualidade passam por uma remercantilização e refilantropização da questão social, que afeta profundamente tanto setores mais carentes quanto o conjunto da sociedade. O debate sobre Terceiro Setor invade a mídia através da publicidade das empresas e desenvolve um papel ideológico claramente funcional aos interesses do capital no processo de reestruturação neoliberal, no caso, promovendo a reversão dos direitos da cidadania por serviços e políticas sociais e assistenciais universais, não contratualistas e de qualidade desenvolvidas pelo Estado e financiadas num sistema de solidariedade universal compulsória.
A diminuição da ação reguladora do aparelho estatal, e o incentivo para o estabelecimento de novas relações com a Sociedade Civil Organizada favoreceram o aparecimento de duas visões extremas na busca de soluções para as inúmeras demandas sociais do Brasil: de um lado, um mercado assistencialista/caritário apontado como retrogrado e responsável pela perpetuação do clientelismo, e de outro a busca pela implantação do chamado “mercado social” regido pela tríade eficiência/eficácia/efetividade. Sob a pressão deste último enfoque, surge a nova ordem social, sendo a sua principal base a estruturação e o funcionamento do Terceiro Setor.
As principais características dessa nova ordem social seriam: o predomínio da ação comunitária sobre a ação estatal e empresarial; o surgimento de uma nova concepção de Estado; mudanças profundas nas relações do cidadão com o governo; diminuição da influência da burocracia estatal e a emergência de redes de solidariedade social. Porém, as mudanças relativas ao papel e ao tamanho do Estado e a crescente divulgação de ações das empresas privadas no campo social, têm gerado discussões sobre o papel das organizações do mercado em questões de interesse público.
Enquanto a nova ordem possibilita um aumento de liberdade, poder e riqueza ao mercado, cresce também a visibilidade das chamadas organizações sem fins de lucro ou organizações do Terceiro Setor. Muitos defendem que as organizações não pertencentes ao Estado, administradas por agentes privados, mas com finalidades públicas, constituem um grupo distinto de Estado e mercado. O setor é divulgado como importante agente de transformação social e também como um conjunto significativo em termos de potencial econômico e de geração de empregos.
Para outros o debate sobre o Terceiro Setor propicia uma análise muito mais aprofundada e menos otimista. Assim, as mudanças ocorridas e em processo, referem-se ao isolamento e a mistificação de uma sociedade civil (definida como Terceiro Setor), “popular”, homogênea e sem contradições de classes (no qual todos buscariam o “bem-comum”) e em oposição ao Estado (chamado “primeiro setor”, supostamente burocrático e ineficiente) e ao mercado (“segundo setor”, orientado pela procura do lucro), personificando o Estado, o mercado e a sociedade civil, numa clara homogeneização desta última.
Partindo deste solo fértil de debates, em que tanto o tema da emergência do Terceiro Setor quanto o da participação das organizações do mercado em questões sociais vêm ganhando crescente visibilidade na mídia nacional, se faz necessário resgatarmos alguns conceitos na área social tentando compreendê-los em suas essências, e principalmente enxergando a sua aplicabilidade na realidade brasileira. Mais especificamente refletiremos neste artigo sobre a “espetacularização” do debate sobre o Terceiro Setor e da visão hegemônica a respeito das intervenções do setor privado nas questões sociais.
Iniciaremos com um breve resgate dos conceitos de filantropia, questão social e marketing social. Em seguida faremos uma análise do debate sobre o Terceiro Setor, propondo com uma visão crítica do modelo predominante de intervenção do setor empresarial nas questões sociais. Por fim, faremos uma pequena confrontação das teorias de Debord e a visão predominante sobre o Terceiro Setor.
Essa compreensão se faz importante num momento em que há muitos pesquisadores, produtores de mídia, gestores de projetos sociais, pesquisadores e docentes envolvidos com o tema.
Questões sociais
Antes de entrarmos na discussão sobre a intervenção do capital (especificamente das empresas) nas questões sociais, é importante traçarmos algumas considerações sobre as mudanças de enfoque e transformações que vêm ocorrendo na sociedade e nas relações sociais.
Para Gisálio Cerqueira Filho, a “questão social”, no sentido universal do termo, quer significar o conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos que o surgimento da classe operária impôs ao mundo no curso da constituição da sociedade capitalista. Assim, “a questão social está fundamentalmente vinculada ao conflito entre o capital e o trabalho”. (Mestriner, 2001: 30-31)
A “reforma” do Estado orientado pelos postulados neoliberais estabelecidos no Consenso de Washington [1], levado a efeito pelo governo F.H. Cardoso e mantido pelo governo Lula, particularmente a “descentralização” e “transferência” para o setor privado (lucrativo ou filantrópico) das políticas sociais, desencadeou um processo de desmonte da atividade social estatal, de reformulação das responsabilidades sociais no trato da “questão social” (conceituadas na Constituição brasileira de 1988).
Segundo Montaño (2002), o processo de isolamento (mediante a “setorialização” de esferas da sociedade) e a mistificação de uma sociedade civil (intitulada de terceiro setor), popular, homogênea e sem contradições de classes (e que buscaria o “bem-comum” em conjunto) e em oposição ao Estado (chamado primeiro setor, acusado de burocrático, ineficiente) e ao mercado (segundo setor, orientado pela procura do lucro), contribui para facilitar a hegemonia do capital na sociedade.
Globalização só para o grande capital. Do trabalho e da pobreza, cada um que cuide do seu como puder. De preferência com Estados fortes para sustentar o sistema financeiro e falidos para cuidar do social. (Laura T. Soares, in Montaño, 2002: 13)
Na lógica dominante a resposta às necessidades deixa de ser uma responsabilidade de todos (na contribuição compulsória do financiamento estatal, instrumento de tal resposta) e um direito do cidadão, e passa agora, sob a égide neoliberal, a ser uma opção do voluntário que ajuda o próximo, e um não-direito do portador de necessidades, excluído do processo produtivo.
Fica em aberto o real objetivo de retirar o Estado (e o capital) da responsabilidade de intervenção na questão social e de transferi-lo para a esfera do Terceiro Setor. Propaga-se que as Ongs – Organizações não-governamentais – seriam mais eficientes que o Estado (o que não se sustenta), e que haveria o imperativo de reduzir os custos necessários para sustentar esta função estatal. Para Montaño, o motivo:
... é fundamentalmente político-ideológico: retirar e esvaziar a dimensão de direito universal do cidadão quanto a políticas sociais (estatais) de qualidade; criar uma cultura de autoculpa pelas mazelas que afetam a população, e de autoajuda e de ajuda mútua para seu enfrentamento; desonerar o capital de tais responsabilidades, criando, por um lado, uma imagem de transferência de responsabilidades e, por outro, a partir da precarização e da focalização (não-universalização) da ação social estatal e do “terceiro setor”, uma nova e abundante demanda lucrativa para o setor empresarial. (2002: 23)
A definição de problema social de Melo Neto e Froes: “... representa um estado de carência de serviços sociais básicos que afeta um determinado segmento populacional, residente numa determinada área geográfica com características sociais, culturais, econômicas e demográficas bem definidas” (1999: 35), confirma a superficialidade com que alguns autores abordam o tema, isolando e distanciando o problema social. Fernandes, mais realista, admite “o aumento da pobreza e a proliferação da violência urbana envenenam o dia-a-dia das elites, forçando-as a se indagarem sobre o que pode ser feito”. (1994: 98)
A nova ideologia de modernização do Estado passa pela sua reforma e reestruturação, em vista da profunda crise de acumulação e a conseqüente impossibilidade de manutenção dos direitos sociais dos cidadãos, que devem ser transformados em mercadoria (a serem atendidos pelo mercado) ou extintos, no caso da incapacidade de consumo. É o que Mestriner confirma:
Proclama-se à centralidade do mercado como instância de mediação societária. As teses de “Estado mínimo” e da dimensão sociocomunitária da “terceira via” predominam e provocam o descarte do Estado estruturado como Estado social de provisão coletiva. (2001: 22)
Filantropia tradicional
A palavra “filantropia” é originária do grego: philos; significa amor e antropos, homem. Relaciona-se ao amor do homem pelo ser humano, ao amor pela humanidade. No sentido mais restrito, constitui-se no sentimento, na preocupação do favorecido com o outro que nada tem, portanto, no gesto voluntarista, sem intenção de lucro, de apropriação de qualquer bem. No sentido mais amplo, supõe o sentimento mais humanitário: a intenção de que o ser humano tenha garantido uma condição digna de vida. É a preocupação com o bem-estar público, coletivo. É a preocupação de praticar o bem. E aí se confunde com a solidariedade.
A experiência da sociedade brasileira de enfrentamento dos problemas sociais não é recente e está longe de ser apenas um modismo estimulado por arautos da responsabilidade social das empresas conforme atesta Landim:
Certamente é nesse universo da filantropia que se forjam historicamente os valores predominantes na cultura das massas brasileiras com relação à ação voluntária e que raramente têm a ver com o ideário individualista liberal. (1998: 277)
Indefesa, a população assistida pelas obras assistenciais e filantrópicas é a principal vítima do processo neoliberal de desmonte do Estado que, tendo diminuído sua capacidade de investimento e intervenção, vê-se neutralizado como instrumento de idealização e implementação de políticas sociais, e tem esvaziado seu papel.
Marketing Social
O termo marketing social apareceu pela primeira vez em 1971, para descrever o uso de princípios e técnicas de marketing para a promoção de uma causa, idéia ou comportamento social. Desde então, passou a significar uma tecnologia de gestão da mudança social, associada ao projeto, implantação e controle de programas voltados para o aumento da disposição de aceitação de uma idéia ou prática social em um ou mais grupos de adotantes escolhidos como alvo.
Marketing social é uma estratégia de mudança de comportamento. Ele combina os melhores elementos das abordagens tradicionais da mudança social num esquema integrado de planejamento e ação, além de aproveitar os avanços na tecnologia das comunicações e na capacidade do marketing. (KOTLER & ROBERTO, 1992: 25)
Entretanto, no Brasil o termo “marketing social” está sendo utilizado, especialmente pela mídia, para designar atuação empresarial no campo social com objetivo de obter diferenciais competitivos, sem o comprometimento de que essas ações tenham o objetivo de influenciar ou mudar o comportamento coletivo. Não é raro nos defrontarmos com informações amplamente divulgadas na grande imprensa sobre o número crescente de empresas que fazem promoções ou associam sua imagem a causas sociais, como forma de estimular vendas ou agregar valor a sua imagem institucional. A ênfase, muitas vezes, é apenas aos benefícios diretos à empresa, sem relacionar essas ações a mudanças de comportamento das populações atendidas.
Para muitos autores o marketing social é um importante instrumento para a transformação social, porém, é questionável, especialmente quando se refere a sua utilização por empresas privadas que visam lucro. Questiona-se até que ponto uma empresa age de acordo com uma visão de longo prazo, preocupada com o interesse público. Exemplos recentes de fusões e demissões em massa em nome da competitividade, sonegação de impostos e desrespeito aos direitos do consumidor não confirmam o otimismo.
Filantropia Empresarial: instrumentalização do social
Os projetos sociais das empresas, denominados de filantropia empresarial, têm conquistado cada vez mais espaço na mídia brasileira, principalmente com a tendência de redução do Estado. “Além dos compromissos que devem assumir com seus trabalhadores, a empresas são instigadas a comprometer-se com a sociedade ao redor”. (Fernandes, 1994: 98)
A chamada empresa cidadã atua nos espaços do mercado e do Estado, propondo-se colaborar com este no que se refere à implementação de políticas e programas sociais. Reconhece a incapacidade atual do Estado em enfrentar sozinho os problemas sociais, mas não deixa de afirmar que a responsabilidade pela Gestão de Políticas e Programas de erradicação da pobreza é, sem dúvida, competência do Estado.
Melo Neto e Froes destacam como fator preponderante para o crescimento do Terceiro Setor:
... a maior participação das empresas, que já descobriram o filão do marketing social. Investem em programas e projetos sociais e obtém retorno social, de imagem e de vendas. Tornam-se “empresas cidadãs” e ganham o respeito de todos: funcionários, clientes, fornecedores, governo comunidade e opinião pública. (1999: 12)
Para alguns especialistas, a filantropia jamais é utilizada como uma ação de marketing, pois é vista como exercício de um mecenato. Porém, muitas empresas utilizam a prática do marketing de filantropia, cuja ênfase é a doação de equipamentos como estratégia de promoção de produtos e marcas. Outras empresas exercem a filantropia como estratégia de vendas ao promoverem vendas especiais, cuja parte do volume de recursos obtidos é destinada a entidades beneficentes.
As campanhas realizadas com esse enfoque reforçam a imagem da empresa doadora, despertam a preferência do consumidor, o respeito dos clientes, a admiração dos seus funcionários e o apoio da comunidade local.
Começando com o apoio a instituições da comunidade, geralmente acabam concentrando seus recursos num serviço ou projeto próprio com a marca da empresa, que lhes dê visibilidade social e cause impacto na opinião pública e consumidores. Conquistar a imagem de “empresa social”, comprometida com as questões sociais, ambientais e educacionais, é a nova estratégia de marketing adotada pelo mercado. Assim como o interesse das organizações empresariais hoje é descobrir a “causa ideal a se dedicar”, ou seja “a boa estratégia filantrópica”, para a qual dar sua marca. Desconhecendo, como afirma Mestriner: ... que sua população-alvo não é a minoria, mas a grande massa populacional de excluídos – nos quais se incluem segmentos do próprio mercado formal hoje tão empobrecidos. (2001: 17)
Em artigo publicado na revista Veja [2], o administrador de empresas Stephen Kanitz afirma que “A filantropia por parte de empresas vem caindo ano a ano, porque muitas preferem montar o próprio instituto com o nome da marca da empresa”. Cita também que os departamentos de marketing de empresas "socialmente responsáveis" acham melhor apoiar causas como educação, crianças ou ecologia. Criança é mais fotogênica que idoso, doente mental ou leproso. Empresa não quer, nem pode, ter sua marca associada a um problema social "mercadologicamente incorreto".
O que é chamado de nova consciência social do empresariado, empresa cidadã e outras denominações, nada mais é do que uma nova modalidade de o capital obter isenção de impostos e subsídios estatais, para a melhora da imagem da empresa e/ou do produto (aumentando as vendas ou os preços das mercadorias).
Terceiro Setor: o canto da sereia
A realidade social não se divide em primeiro, segundo, e terceiro setor – esse debate setorialista oferece uma discussão sobre o social que entende de forma desarticulada o Estado, o mercado e a sociedade civil.
Uma justificativa quase que uníssona para a expansão do Terceiro Setor é que a ineficácia dos serviços públicos estimula a busca de alternativas autônomas que, embora não sejam capazes de enfrentar os problemas em toda a sua extensão, reforçam as idéias de ajuda mútua e de iniciativa própria. Esse estado de carência orçamentária dos governos estimularia a busca de recursos para fins sociais no setor privado.
Existem Ongs dos mais diversos tipos, tamanhos e finalidades. Independentemente de suas boas intenções, a maioria delas, por políticas explícitas por parte dos próprios governos, vem assumindo um papel substitutivo ao Estado, sobretudo naqueles lugares mais pobres e afastados, de onde o Estado ou se retirou ou simplesmente não existia.
Deixando claro a ideologia que está por traz do discurso sobre a “nova” ordem social Fernandes diz que os “serviços públicos dispersos pelas microiniciativas cidadãs não têm como prosperar se não interagirem positivamente com as macrointervenções públicas agenciadas pelo Estado” (1994: 95). Nesse sentido concordamos com Mestriner (2001) quando afirma que ampliar a participação da sociedade civil não significa desobrigar o Estado e esvaziá-lo das suas competências, mas antes permitir-lhe maior alcance, maior diversidade de atenções, com efetividade e equidade na execução dos seus serviços.
Substituir ou suprir a ação estatal por um conjunto de intervenções paralelas e sobrepostas, pontuais e fragmentadas pode significar um risco social maior do que o esperado. Conforme afirma Laura T. Soares “Caímos no reino do ‘minimalismo’, onde pequenas soluções ad hoc são mostradas como grandes exemplos pelo governo e pela mídia.” (in Montaño, 2002: 12)
A questão decisiva, no entanto, é saber se este novo modelo de intervenção social que se impõe tem condições de ser um novo paradigma de reprodução social. Para tanto, ele terá que ir além das simples medidas paliativas ou de urgência, destinadas somente a fazer curativos leves nas feridas abertas pela “mão invisível” do mercado globalizado.
Se continuarmos com o desmonte do Estado e sem nenhum desenvolvimento econômico, com certeza a aclamada filantropia praticada pelas empresas não sobreviverá somente com as “migalhas” da caridade deixadas pela produção que visa o lucro. Para alguns teóricos do Terceiro Setor a reforma de Estado e da administração pública é um caminho inevitável, porém, está claro que sem uma coordenação Estatal, as intervenções do setor lucrativo nas questões sociais podem:
ter impacto sobre as políticas sociais, reduzindo significativamente o já precário aparato social, não só extinguindo, mas desestatizando organismos públicos (como hospitais, universidades, centros de pesquisa), num flagrante transferência de responsabilidade para a sociedade civil e num descaso com o aprofundamento da pobreza e exclusão social. (Mestriner, 2001: 26)
A mídia tem cumprido o seu papel de promotora do Terceiro Setor, divulgando iniciativas sociais, por parte de governos, empresas, associações e comunidades, e publicando pesquisas sociais de alto impacto social.
Sociedade do espetáculo
Para uma análise da visão dominante sobre o Terceiro Setor e a intervenção do setor privado em questões sociais, recorreremos ao pensamento do filósofo francês Guy Debord expresso em sua obra: A sociedade do Espetáculo. Publicado em 1967, o livro traz uma grave denúncia: já naquela época Debord denunciava a tirania das imagens e a submissão alienante ao império da mídia. Para ele, os profissionais do espetáculo tinham passado a organizar de maneira consciente e sistemática o império da passividade moderna. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. (Debord, 1997: 14)
É necessário esclarecer que “Os Espetáculos” não se referem aos meios de comunicação “que são sua manifestação superficial mais esmagadora”. (Ibidem: 20). Eles representam uma contemplação passiva de imagens, substituem o vivido em todos os lugares, não só na mídia por determinações externas já que “essa comunicação é essencialmente unilateral; sua concentração eqüivale a acumular nas mãos da administração do sistema os meios que lhe permitem prosseguir nessa precisa administração” (Ibidem: 21).
Debord afirma que o espetáculo é uma totalidade, pois representa a sociedade inteira. Tudo: a arte, os partidos políticos, as ciências, a vida quotidiana, as paixões, os desejos humanos e qualquer manifestação social fazem parte dessa totalidade espetacular. São imagens falseadas, pois produzidas por uma parte da sociedade (comunicação unilateral) e submetidas ao consumo de todos (totalidade social) que as transformam em comportamento real, consenso; o vivido torna-se imagem da imagem tornada real.
Podemos considerar como objetivo único do espetáculo, a manutenção da ordem, da alienação, do princípio da não intervenção: a reprodução dessa mesma totalidade. Nesse sentido “A ideologia é à base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da história” (Ibidem: 137). O espetáculo é o fetiche.
O tempo reafirmou o que já estava posto: o fetichismo da mercadoria (transmutada em espetáculo), a alienação, o não “ser”, a representação fantasmagórica de si próprio – a ver-se em imagens sem perceber a apropriação do seu tempo – no trabalho e mesmo no ócio - quando se diverte, ou atua como “voluntário”. Continua a contemplação, imóvel, estática. O que muda são os fundamentos do espetáculo: as renovações tecnológicas, o discurso uníssono, a fusão econômica-estatal que trazem como conseqüências “o segredo generalizado... o falso sem réplica ... e o eterno presente” (Ibidem: 175)
Triunfo total do valor de troca sobre o valor de uso das mercadorias, agora se impondo como necessidade absoluta. O poder mantém-se com a burguesia, entretanto, utilizando-se da força do espetáculo, apodera-se, também, do tempo livre. A produção econômica “espetacularizada” transforma-se, enfim, e passa a reproduzir-se, a criar e manipular as necessidades humanas. O discurso manipulador se realiza com a publicidade e confirma que “a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. (Ibidem: 13)
Debord afirma que o espetáculo incorpora as antigas alienações: a ilusão religiosa, a alienação instituída pelo Estado moderno, o dinheiro. O espetáculo é a ideologia materializada e concentra, enfim, a alienação mais completa: a abstração, em imagens, do que poderia ser o “ser”. Entretanto, é assim que se apresenta: as imagens são os sujeitos. E serão as imagens – novos fetiches/sujeitos – que assumirão a mediação entre os homens, separados e incomunicáveis entre si. Surge, então, o atual papel das mídias.
Uma grande passo para efetivar o processo da dominação espetacular era "fazer sumir o conhecimento histórico geral; e, em primeiro lugar, quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o passado recente". (Ibidem: 176). Imprescindível manter um discurso único e hegemônico capaz de anular as vozes discordantes. A ignorância do que acontece é organizada com habilidade e aquilo que conseguiu se fazer conhecer é rapidamente levado ao esquecimento sob pena de quebrar a harmonia estabelecida pelo dominador. “O mais importante é o mais oculto”. (Ibidem: 177)
Produtos do Bem
“Compre os Produtos do Bem na Farmais e Ajude a promover a Saúde e o Bem-estar da População Carente.” (peça publicitária distribuída nas lojas da rede de Drogarias Farmais, presente também no site da Farmais [3] e até nos vagões de trem do Metrô de São Paulo).
Toda peça publicitária tem por objetivo divulgar as características do produto e promover-lhe a venda, porém, conforme afirma Baudrillard “Nem o discurso retórico, nem mesmo o discurso informativo sobre as virtudes do produto tem efeito decisivo sobre o comprador.” (1989: 176)
Para Baudrillard “O indivíduo é sensível à temática latente de proteção e gratificação” (1989: 176). Por isso, a peça publicitária “Produtos do Bem” dirige-se ao consumidor afirmando que seu desejo de proteção – projetado na ajuda aos desvalidos – se realizará, desde que ele compre os produtos oferecidos. Podemos observar que a maioria das peças publicitárias de filantropia empresarial captura a dimensão instintiva dos membros da sociedade, esvaziando nossa capacidade de sermos sujeitos de nossos próprios desejos.
Na lógica de funcionamento da sociedade de consumo, toda manifestação de solidariedade é capturada pela publicidade e reduzida ao ato de consumir, o que dificulta a existência de uma consciência crítica sobre o interesse do setor privado nas questões sociais. O mais importante – no processo de espetacularização das coisas – é o mais oculto: “A publicidade que silencia sobre os processos objetivos de produção e de mercado, também omite a sociedade real e suas contradições.” (Baudrillard, 1989: 187)
Partindo da premissa que o consumidor se relaciona com os outros consumidores através da identificação com as imagens associadas aos produtos que consomem, ajudar ao próximo significa consumir a marca X da empresa que “está fazendo a sua parte”.
A publicidade contribui decisivamente para a existência de identidades sociais vinculadas ao consumo de mercadorias. Trata-se de um mecanismo artificial de diferenciação social, marcado pela dimensão imaginária. (Coelho, 2003: 17)
No geral as peças publicitárias que apelam para questões de responsabilidade social ou filantropia empresarial procuram criar uma relação de identificação entre os consumidores e o produto divulgado. Para tanto, cria um “estilo de vida” ou um universo imaginário que confere atributos humanos às mercadorias: “Produtos do Bem”.
Não podemos nos esquecer que quando compramos um produto, compramos o universo imaginário criado pela publicidade para a venda deste produto; dessa forma os produtos adquiridos funcionam como espelhos a refletir nossa identidade.
Quando mediamos a ajuda ao próximo pelo consumo de produtos acabamos por transformar o outro em produto: desodorante (menor carente), tintura para cabelos (abrigo para idosos), vitamina C (deficientes físicos). E transformar o outro em produto é inseparável da transformação do eu em produto, gerando uma sociedade onde não há reconhecimento da alteridade; onde tudo é mercado até a miséria.
O advento do neoliberalismo deu origem a uma sociabilidade fragmentada baseada na lógica mercantil: somente os consumidores são reconhecidos. O indivíduo passa a buscar seus interesses econômicos (lucros e vantagens competitivas) em detrimento do estabelecimento de uma relação que leve o outro em consideração, exceto quando essa relação possa lhe trazer alguma vantagem.
A busca do lucro, o princípio organizador da economia capitalista, torna-se assim o princípio organizador da vida social de modo geral. Neste contexto, a publicidade torna-se a forma predominante de comunicação social: ela é legitimada pela sociedade, ao mesmo tempo em que legitima a sociedade capitalista de consumo (neoliberal). (Coelho, 2003: 14)
Através da publicidade dos produtos, as empresas assumem a função de “cuidar” das necessidades da população carente. Com isso o neoliberalismo esvazia a noção política da cidadania: a responsabilidade do indivíduo pelos destinos da sociedade em que vive. As empresas-cidadãs exercem sua responsabilidade social e substituem os indivíduos-cidadãos, mediando a relação de solidariedade no âmbito da sociedade.
Para coelho “A ideologia neoliberal das ‘empresas de responsabilidade social’, além de ser uma forma sutil de legitimação da busca do lucro, evidencia o caráter regressivo da sociedade capitalista de consumo.” (2003: 16). O que põe em risco toda uma rede pré-existente – ligada aos movimentos sociais e igrejas – de auxílio às populações carentes. ”O triunfo da publicidade significa o triunfo da fragmentação social, da multiplicação de identidades sociais construídas com base no consumo.” (Coelho, 2003: 18)
Protegendo-se por trás de um argumento de autoridade, o neoliberalismo procura esvaziar nossa capacidade de imaginar uma outra forma de vida social: a sociedade capitalista – alicerçada no consumo – é a única realidade possível, e a única realidade possível é o capitalismo. E quem não está na lógica de mercado, simplesmente não existe.
Ao enxergar o ser humano exclusivamente pela ótica mercantil, o neoliberalismo leva às últimas consequências o princípio organizador da vida econômica no capitalismo. Na sociedade capitalista contemporânea, os indivíduos se vêem e devem ser vistos como produtos que estão à venda, conforme expressa com clareza o título de uma publicação de Editora Abril, a revista Você S/A. (Coelho, 2003: 14)
Mídia e ações sociais das empresas
Infelizmente assistimos a transformação da sociedade civil dos anos 70, engajada e ativa em suas reivindicações, nessa coisa amorfa e despolitizada chamada Terceiro Setor. Gramsci entendia a sociedade civil como arena da luta de classes, um espaço político por excelência. As reivindicações políticas, as greves e as passeatas se esvaziaram, desapareceram. “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (Debord, 1997: 13), uma imagem muda desfilando ao som do hino nacional em horário nobre na Tevê.
Nesse contexto não podemos nos esquecer que a mídia brasileira possui uma parcela de responsabilidade nada desprezível na construção das narrativas que “explicam” os fatos do mundo e a “evolução” da sociedade, e, portanto, na construção de percepções e consensos sobre o Terceiro Setor e as ações sociais das empresas.
Adorno e Horkheimer citam a dualidade da mídia como
O terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada em si mesma. (1994: 114)
Para os frankfurtianos a mídia enquanto técnica está inserida na lógica da racionalidade enquanto dominação. Para eles é difícil escapar dessa racionalidade instrumental, técnica, onde os meios estão acima dos fins.
Discutir as ações sociais das empresas sem partir do otimismo generalizado dos adeptos do Terceiro Setor requer uma discussão preliminar – então julgamos pertinente a seguinte reflexão de Marx:
Chegou-se finalmente a uma época em que tudo aquilo que os homens tinham considerado como inalienável se tornou objecto de troca, de tráfico e se pode alienar. É a época em que as coisas até então eram comunicadas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas - virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. - em que tudo finalmente entra no comércio. (1975: 194)
As atividades filantrópicas das fundações empresariais divulgadas como produto de uma maior sensibilidade e responsabilidade social do empresariado resulta numa “visão romântica e fetichizada da realidade”, Montaño amplia essa análise afirmando que as vantagens econômicas e/ou políticas da atividade filantrópica trazem para a empresa maiores benefícios que seus custos:
O luxo, dizia Marx, “entra nos custos de representação do capital”, como fonte de crédito e de vantagens econômicas e políticas. Hoje poderíamos acrescentar: a filantropia empresarial entra nos custos de representação do capital, limpando a imagem da empresa, melhorando o marketing comercial, isentando o capital de impostos estatais, conseguindo subsídios, entre outros benefícios. (Montaño, 2002: 213)
Contribuir financeiramente para causas sociais não é um ato condenável, porém, acreditar que um dos principais atores da estrutura capitalista e, consequentemente, responsável pela exploração do trabalho, esteja disposto a diminuir sua margem de lucro em benefício da coletividade não passa de ilusão. Hannah Arendt corrobora esse pensamento:
O fato é que uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude do consumo, condena à ruína tudo em que toca. (1968: 264)
Reflexões finais
Os caminhos escolhidos pela sociedade brasileira para solução dos graves desajustes sociais se mostram ainda tortuosos. A predominância de uma única visão – dominante – sobre chamado Terceiro Setor arrasta os meios de comunicação para uma exaltação desmedida das intervenções privadas, principalmente das empresas, nas causas sociais. Essa “espetacularização” da filantropia empresarial cria distúrbios em setores tradicionais de amparo aos necessitados, e podem ter efeitos ainda mais danosos no longo prazo.
O show da Responsabilidade Social das empresas invade os meios de comunicação e empresta um “ar de cidadania” à publicidade de marcas e produtos. Um grande espetáculo que alimenta de esperança os mais apressados, iludidos com a “bondade” espontânea e caridosa das empresas, mas que vem preocupando cada vez mais os atores envolvidos diretamente com questões sociais.
Na prática, a publicidade das empresas que exercem sua “responsabilidade social” além de reverter recursos ao sabor das campanhas e promoções realizadas, ainda deixa o público doador com a sensação de “problema resolvido”, como se a fonte de recursos esporadicamente destinada pelas empresas à causa social fosse inesgotável.
As ações da filantropia empresarial e as estratégias de marketing social, por mais amplas e desenvolvidas que sejam, não são suficientes para promover transformações profundas, pois não atacam as causas da miséria. Para alterar o status quo e transformar a sociedade é necessário bem mais que apenas estratégias de marketing, mas, também, políticas públicas consistentes e coordenadas, o fortalecimento da cidadania e da democracia, redução das desigualdades econômicas e sociais, e principalmente o comprometimento dos setores dominantes da sociedade com mudanças estruturais.
Deixando “o espetáculo do crescimento” da responsabilidade social um pouco de lado, faz-se necessário uma reflexão madura sobre “re-organização” do Estado e a participação das empresas na solução dos problemas sociais que afligem a população brasileira.
Notas
- Reunião realizada em novembro de 1989 em Washington, entre organismos de financiamento internacional de Bretton Woods (FMI. BID, Banco Mundial), funcionários do governo americano e economistas latino-americanos para avaliar as reformas econômicas que estavam em processo nos países latinos. Foram abordadas dez áreas: disciplina fiscal, priorização dos gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira, regime cambial, liberalização comercial, investimento direto estrangeiro, privatização, desregulação e propriedade intelectual (Montaño, 2002: 29).
- Artigo Publicado na Revista Veja, edição 1748, ano 35, nº 16, 24 de abril de 2002.
- Disponível no Site: www.farmais.com.br. Acessado em 14 de fevereiro de 2004.
Bibliografia
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1994.
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Perspectiva, 1968.
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Trabalho apresentado à Sessão de Temas Livres do XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
Contato: [email protected]
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